Se alguém falar alguma coisa contra um outro sem provas cabais, o veículo pode ser punido, o que levará a autocensura
O Brasil se tornou um terreno baldio de contencioso jurídico. Isso gera o que descrevo como censura líquida, caracterizada por operar dentro do Estado de Direito e de ser função do poder judiciário.
Resumindo a ópera: a censura hoje no Brasil emana do leviatã jurídico em associação com facções variadas. E com as palmas dos especialistas em como tornar o mundo melhor —gente que nunca merece muita confiança—, principalmente, para os seus companheiros de facção.
“Facção” era um termo usado na época em que os federalistas escreviam seus “federalists papers” (“artigos federalistas”), volume este composto, no final do século 18 nos EUA, por artigos de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, para descrever grupos poderosos de interesses em conflito, que atravessaram as instituições da nascente democracia americana, enfraquecendo a unidade republicana do jovem regime político.
Assistimos hoje à tomada do STF por facções que representam “terrivelmente” lobbies ideológicos, amizades e similares dos mais variados tons. A ação das facções reduz a operação republicana seja lá de qual for a instituição em que elas deitam raízes.
A censura tem dois grandes pilares na sua operação diária. O primeiro é o poder em si da pessoa ou instituição dotada da capacidade legal de constranger qualquer ação ao seu redor. O segundo é a arte de interpretar os textos para enquadrá-los no âmbito do que a lei descreve como crime ou similar –e, lembremos, qualquer um pode inventar leis uma vez tendo sido ungido para tal. O resultado é o medo constante de ser punido.
A nova lei da imprensa do leviatã máximo no Brasil é desse tipo. Se alguém falar alguma coisa contra um outro sem provas cabais, o veículo pode ser punido. O efeito será a autocensura prévia da editoria, autocensura esta chamada, pelos aliados da nova lei, de aumento da qualidade da informação.
Esse argumento hoje é a antessala da censura. O espaço para judicialização da palavra pública agigantou-se. Essa lei é uma convergência dos poderes sob a rubrica de defesa da honra deles e de seus parceiros de facção. O politicamente correto se fez juridicamente correto e, assim, foi monetizado de forma mais bem-sucedida.
Quando se analisa frases para ver se o autor pode ser processado, sentimos o calor da fogueira. A censura líquida se faz acompanhar do aquecimento do mercado de contencioso. Você nem precisa levar seu desafeto ao cadafalso, basta obrigá-lo a contratar um advogado capaz de salvá-lo, que, necessariamente, custará caro. Ou seja, você pode destruir a vida de qualquer desafeto. Lembrando que no Brasil continua valendo a máxima “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. A república brasileira anda nua.
E o bolsonarismo ainda aumentou a credencial da censura líquida ao tornar qualquer crítica ao establishment um acesso de idiotice perigosa.
A judicialização da vida é inevitável à medida que o contrato de costumes se desfaz. Ninguém confia em ninguém. O componente judicial, quando associado à vida, tende a se espalhar como uma epidemia de paranoia. A palavra pública será cada vez mais insalubre. Portanto, aqui segue uma receita de sucesso para 2024 para quem trabalha na mídia.
Bolo de chocolate. Ingredientes. Massa: Uma xícara de chá de chocolate em pó. Uma xícara de chá de açúcar. Duas xícaras de chá de farinha de trigo tradicional. Uma xícara de chá de óleo. Uma xícara de chá de leite. Dois ovos. Uma colher de sopa de fermento em pós. Calda: Uma colher de sopa de manteiga. Três colheres de sopa de chocolate em pó. Três colheres de sopa de açúcar. Uma xícara de chá de leite. Preparo: bata no liquidificador os ovos, o leite, o óleo, o chocolate e o açúcar. Coloque em um bowl e acrescente a farinha de trigo e o fermento. Misture delicadamente. Coloque em uma forma untada e leve para assar em forno preaquecido a 180ºC por 30 minutos.
Para a calda, misture todos os ingredientes em uma panela e leve para ferver. Assim que o bolo sair do forno, faça furinhos com o garfo e regue-o com calda.
Confuso? Busque no Google “receitas de bolo e ditadura”.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Notas sobre a Esperança e o Desespero” e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.