ALEXA SALOMÃO
 
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Garantir de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões de receitas recorrentes, todos os anos. Sem isso, dificilmente os especialistas em contas públicas vão endossar a nova regra fiscal do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), explica o economista Bráulio Borges, especialista em contas públicas. “O mercado pode começar a acreditar quando o governo entregar as medidas que está prometendo para aumentar a receita —e não qualquer medida, mas as mais polpudas, que trazem R$ 30 bilhões, R$ 50 bilhões”, afirma ele.
Esse compromisso se tornou mais premente após o Ministério da Fazenda enviar ao Congresso uma regra com mecanismos de cobrança mais frouxos em caso de descumprimento das metas a que se comprometeu, e também quando ficou claro que o esforço inicial não garante uma redução da dívida no atual mandato.
“A meta, apresentada pela Fazenda, de sair de um déficit de 0,5% do PIB [Produto Interno Bruto] neste ano para o superávit de 1,26% em 2026, não vai estar no projeto de lei complementar. Vai constar, todos os anos, da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias]”, afirma Borges. “Então, nada garante esse número anunciado pelo ministro Haddad.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista que economista concedeu à Folha.
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A Faria Lima, avenida que serve de apelido para o conjunto do mercado financeiro, recebeu mal os detalhes do arcabouço fiscal enviado ao Congresso. Mas integrantes do governo, especialmente a base do PT, reclamam que o ajuste proposto pela equipe do ministro da Fazenda Fernando Haddad é mais forte que o teto de gastos. Como isso é possível?

Vamos voltar no tempo. O teto de gastos buscava uma melhora no resultado primário de quatro pontos percentuais do PIB em dez anos, cortando gastos. Seria uma queda de 0,4% ao ano, na média.

A consolidação fiscal proposta pelo governo Lula sai de um déficit primário de -1% do PIB neste ano para chegar a um superávit de 1% em 2026. A gente está falando aqui de uma consolidação fiscal de aproximadamente dois pontos percentuais, 0,5% ao ano. Mas a gente sabe que boa parte disso precisa ser feita com aumento de receita. 

O teto tinha a proposta de levar a despesa de 19,9% do PIB para perto de 16% em dez anos. A nova regra, em quatro, busca uma estabilização da despesa. Ela foi de 18,1% em 2022 e deve ficar em 18,9% neste ano. Simulei seis cenários distintos, com crescimento maior e menor do PIB, com e sem aumento de carga tributária. A despesa ficaria entre 18,2% e 18,8% em 2026.

Os horizontes são diferentes, mas a consolidação total apresentada lá atrás pelo teto era o dobro da proposta na regra atual.

Mas no caso do teto teve um truque no começo. O aperto não foi linear. Lá em 2016, o déficit projetado foi revisado para muito pior. Isso levou a um reajuste da despesa maior do que se esperava, pois o teto era a despesa efetiva de 2016, corrigida pelo IPCA dos anos seguintes.

Apesar de ousado, a crítica que não aparece, e precisa ser feita, é que o teto não entregou a sustentabilidade fiscal, entendida como dívida pública estável e cadente, e se mostrou, com o tempo, inviável, mas como o ajuste proposto pelo teto ocorria pelo lado da despesa, não pelo lado da receita, como agora, o mercado deu o benefício da dúvida.
De 2017 a 2019, a dívida pública brasileira subiu nove pontos percentuais do PIB. O teto não estabilizou a dívida nos anos iniciais, muito pelo contrário.

Volta para 2019, antes da pandemia, porque a pandemia bagunçou muita coisa. Naquele momento, o consenso do mercado dizia que a dívida pública iria subir mais quatro pontos percentuais nos quatro anos seguintes. Ou seja, não havia a expectativa de que o teto fosse estabilizar a dívida antes de 2023 ou 2024.

Em 2019 começou a ficar um pouco mais difícil cumprir o teto, mesmo com a reforma da Previdência. Esse é um ponto importante. Foi vendida a ideia de que a reforma da Previdência era uma das principais medidas para o cumprimento do teto, e não é verdade. Foi aprovada em 2019 uma reforma ainda mais potente do que a sugerida antes, mas mesmo assim
O investimento foi sendo cortado. O Bolsa Família ficou congelado de 2015 até 2021. Os servidores deixaram de ter reajuste. O salário mínimo não teve ganho real.

Em setembro de 2019, Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco lançaram uma proposta de revisão do teto em 2023, em um novo governo, pela simples constatação de que o teto original era inviável.

No final do ano passado, mostrando esse estrangulamento, o governo eleito conseguiu elevar os gastos com a aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda a Constituição). Isso também facilita o ajuste inicialmente como ocorreu com o teto?

A PEC fez um reajuste na despesa de R$ 170 bilhões —na prática, foi de R$ 145 bilhões, porque cerca de R$ 24 bilhões são recursos das contas abandonadas do PIS que o governo quer sacar para financiar obras de investimento neste ano.

Foram reajustadas, em boa parte, despesas obrigatórias, com o Bolsa Família. Essa é outra questão importante.

Entre 2004 e 2020, o Brasil gastou cerca de 0,4% do PIB por ano com o Bolsa Família. Em 2021, chegou a 1,1%. Agora, com R$ 600 e benefícios adicionais para crianças e jovens, vai a 1,5% do PIB de 2023 em diante. Ou seja, houve um aumento de pouco mais de um ponto percentual do PIB de uma despesa obrigatória —e isso ocorreria com Lula, Jair Bolsonaro, Simone Tebet ou Ciro Gomes, conforme vimos no debate eleitoral.

Ora, um aumento da despesa obrigatória dessa ordem de grandeza precisa ser financiado com sustentabilidade fiscal. Contudo, sabemos que é quase impossível fazer isso com cortes tempestivos de 1% do PIB de outras despesas. Ainda mais quando é preciso recompor investimento público, gastos com saúde e educação, por exemplo. Neste caso, a PEC dificultou o cumprimento das metas fiscais. Não é à toa que que precisam de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões de receita recorrente adicional para entregar as metas. A PEC criou o tamanho do ajuste sobre o qual falamos agora.

É quase o inverso, então, ela dificulta a nova regra agora?

Sim. Daí toda a briga na tentativa de limitar o tamanho do ajuste do Orçamento 2023 logo após as eleições. Havia necessidade de recomposição em várias rubricas, mas, por outro lado, a sustentabilidade fiscal demandava cautela.

O ponto crucial em toda a discussão é dívida pública. Existem muitas continhas —eu mesmo fiz várias— mostrando qual é o superávit primário necessário para a gente estabilizar a dívida em proporção do PIB.

Esse número mágico depende de vários fatores, como crescimento do PIB e taxa de juros, por exemplo. Nas minhas contas, em um cenário realista, precisamos de um superávit primário [ter mais receitas que despesas] na faixa de 1% a 1,5% do PIB para estabilizar a dívida e, depois, eventualmente, gerar a queda dela lá na frente.

A nova regra propõe um superávit primário de 1% do PIB até 2026 —o limite inferior dessa faixa

 Mas inicialmente, a regra agradou ainda assim, mas depois, com o texto do Congresso, surgiram questionamentos. O que ocorreu?
A proposta formal tem um enforcement muito fraco.

O que é enforcement fraco?

A imposição para o cumprimento do que está sendo prometido.

A meta, apresentada pela Fazenda, de sair de um déficit de 0,5% do PIB neste ano para o superávit de 1,26% em 2026, não vai estar no projeto de lei complementar. Vai constar, todos os anos, da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentária]. Então, nada garante esse número anunciado por Haddad. Não está travado.

A proposta também está mudando alguns aspecto da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que enfraquecem o compromisso da proposta. Incluímos aí a história de que o contingenciamento deixa de ser obrigatório, como prevê a LRF, e passa a ser opcional.

Também está na LRF, mas foi retirado do projeto de lei complementar a punição do Executivo pelo não cumprimento da meta. 

Qual é o problema disso tudo? Como o enforcement é fraco, a postura dos agentes econômicos é de ver para crer. O governo não tem o benefício da dúvida —e por não ter, não antecipa, via expectativas, ganhos como a melhora no câmbio.

O que melhoria a confiança?

O mercado pode começar a acreditar quando o governo entregar as medidas que está prometendo para aumentar a receita —e não qualquer medida, mas as mais polpudas, que trazem R$ 30 bilhões, R$ 50 bilhões em receitas recorrentes.

RAIO-X
Bráulio Borges, 42
Graduado em Economia e mestre em Teoria Econômica pela FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo). É economista-sênior da área de Macroeconomia da LCA e, desde 2015, e pesquisador-associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas)