SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando aprendia sobre a escravidão na escola, Bárbara Carine sentia muita raiva e vergonha. Não entendia por que os negros escravizados “não se levantavam contra o senhor e faziam dele pedacinhos”. Com o branco sempre como protagonista, as aulas pouco falavam sobre os movimentos de insurreição.

Aos 37 anos, ela faz sucesso nas redes sociais com o perfil Uma Intelectual Diferentona e, dentro e fora do universo digital, se consolida como pensadora antirracista. No final do ano passado, venceu o prêmio Jabuti, na categoria educação, com o livro “Como Ser um Educador Antirracista” (ed. Planeta; R$ 55,90).

De uma família negra da periferia de Salvador –a mãe mudou-se de um quilombo para a capital aos 9 anos para trabalhar como empregada doméstica–, Bárbara enfrentou uma série de dificuldades em sua trajetória acadêmica, que inclui duas graduações (química e filosofia), mestrado e doutorado, todos pela Universidade Federal da Bahia, além de um estágio de pós-doutorado em educação pela USP.

As carências eram materiais, mas também subjetivas, ela conta. “Era como se eu fosse à escola assistir ao protagonismo do branco”, diz.

Em 2019, Bárbara fundou, em Salvador, a primeira escola afro-brasileira do país registrada pelo MEC (Ministério da Educação), a Maria Felipa. O nome é de uma heroína negra da independência do Brasil na Bahia. Neste ano, a escola ganhou uma unidade no Rio de Janeiro, da qual a atriz Leandra Leal é sócia, além da empresária Maju Passos.

Nesta entrevista à Folha de S.Paulo, Bárbara fala das marcas do racismo na formação de crianças e jovens e aponta caminhos para uma educação antirracista.

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PERGUNTA – O que o fato de ser negra significou no seu cotidiano escolar?

BÁRBARA CARINE – Significou construir uma subjetividade a partir de múltiplas ausências, em uma escola na qual eu não me via no corpo docente, não me via positivada em um livro didático, na literatura, nos aspectos estéticos, religiosos, epistemológicos. Era como se eu fosse à escola assistir ao protagonismo do branco, ao conhecimento do branco, à religião do branco, à estética do branco, à narrativa única do branco.

Lembro que estudar escravidão sempre era um momento de muita raiva e vergonha para mim. Não conseguia entender o porquê de tantas pessoas, tantos ancestrais meus escravizados não conseguirem se articular e matar o senhor. Por que a gente não se levantava contra o senhor e fazia dele pedacinhos?

Construímos movimentos quilombistas, abolicionistas, diversas frentes de resistência no país. E essas insurreições não foram visibilizadas na escola para não trazer para nós o poder que efetivamente temos.

P – Como foi sua trajetória acadêmica em um mundo restrito a brancos por anos?

BC – Venho de uma família muito pobre e não tinha recursos para comprar materiais, para o transporte, para me alimentar na universidade. A universidade é situada em um bairro nobre de Salvador, então tive muitas carências materiais, mas também subjetivas. Eu me tornei uma intelectual que não vi, me construí a partir da lógica de um espelho quebrado. Fiz duas graduações, um mestrado e um doutorado sem nunca ter lido um autor negro ou uma autora negra por sugestão de professor ou professora, sem nunca ter visto uma professora negra na minha sala de aula.

Não tive esse processo de construção de autorreferência positiva na academia. Quando terminei meu doutorado, fui fazer meu próprio movimento Sankofa [conceito originário da África Ocidental que encoraja a volta às raízes], de voltar e buscar o que ficou pelo caminho. Construí uma outra narrativa, diferente daquela eurocêntrica que me foi trazida pelo discurso do colonizador. Precisei fazer esse movimento para me reconstituir como pessoa, como intelectual. Não foi fácil, mas hoje procuro socializar esses conhecimentos nos espaços em que eu atuo.

P – Como sua luta por uma educação antirracista e a maternidade se relacionam?

BC – Elas se relacionam a partir do momento que decidi ser mãe, pela via da adoção, e escolhi ser mãe de uma menina negra. Quando a minha filha chegou, me preocupei com a escola em que ela iria estudar, porque sei que a escola pode fazer você nadar contra uma correnteza gigantesca do brancocentrismo. Precisava que minha filha se formasse em um espaço que potencializasse sua subjetividade, sua existência como menina negra.

P – As escolas de hoje, em geral, são melhores, piores ou iguais às da época em que você estudou, em termos de uma educação antirracista?

BC – Na época em que eu estudei não existia a Lei 10.639 [de 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afrobrasileira nas escolas], a Lei 11.645 [de 2008, que incluiu como obrigatório o ensino da história e cultura indígena]. Isso não significa que as escolas cumpram essa obrigatoriedade. Em 2023, uma pesquisa do Instituto Geledés e do Instituto Alana que apontava que, em todo o país, 29% das escolas municipais cumpriam essas leis. A gente tem um movimento de avanço, sim, mas a passos muito lentos.

P – Há planos de expansão para a Maria Felipa? Planejam formar professores, desenvolver um projeto antirracista para ser utilizado por outras escolas?

BC – A Maria Felipa enfrenta vários desafios. Primeiramente, o econômico, que faz com que sempre ronde uma sombra de falência na nossa escola. Somos voltados à questão da sobrevivência da escola, porque são poucas as famílias que optam por essa educação [a escola tem mensalidade de R$ 2.090, com 20% das vagas reservadas a bolsas integrais para negros e indígenas em vulnerabilidade social; em Salvador são 51 pagantes e 20 bolsistas e, no Rio, 19 pagantes e 4 bolsistas].

Oferecemos cursos, consultorias, movimentos para levantar fundos para as escolas. E isso inviabiliza planos como o de crescimento para o fundamental 2 [6º a 9º ano], o ensino médio, de ter um programa de formação de professores, uma pós-graduação, de fazer com que a Maria Felipa seja uma marca não apenas para a educação formal, mas para educação antirracista em todos os setores sociais.

P – Quais são os pilares de uma educação antirracista?

BC – Na Maria Felipa, prezamos por uma educação de reforço positivo. Articulamos os grandes marcos regulatórios do nosso povo, do nosso país, e os conhecimentos africanos com os indígenas e, sim, com os europeus, porque a ideia não é jogar a Europa na lata do lixo. A ideia é que o currículo não seja eurocêntrico, é trazer as várias perspectivas de formação da nossa cultura. E trazemos todas essas culturas em grau de paridade epistêmica e de positivação.

Não podemos falar que o negro produziu apenas o samba e o acarajé, e que o branco produziu matemática, ciência, filosofia, história, artes etc. Se vamos falar da ciência branca, vamos falar também da ciência africana. Da matemática africana. Somos descendentes dos primeiros cientistas, filósofos, reis, rainhas, matemáticos, conseguimos construir uma subjetividade muito mais altiva e disposta a pensar futuros outros, a sonhar de um jeito que merecemos.

RAIO-X | BÁRBARA CARINE, 37

Nascida em Salvador, é professora, escritora, empresária, palestrante e influenciadora, com o perfil @uma_intelectual_diferentona. Formada em química e filosofia pela UFBA, é mestre e doutora em ensino de química e realizou estágio de pós-doutorado na cátedra de educação básica do Instituto de Estudos Avançados da USP. É professora-adjunta do Instituto de Química da UFBA e idealizadora e sócia da Escola Maria Felipa. Autora de “Como Ser Um Educador Antirracista”, vencedor do prêmio Jabuti 2024 na categoria educação.