RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em 1965, Ivone Lara fez história ao se tornar a primeira mulher a assinar um samba-enredo no desfile principal do Rio de Janeiro. O clássico “Os Cinco Bailes da História do Rio”, para o Império Serrano, marcou uma virada simbólica: uma mulher, em um espaço dominado por homens, não apenas participava, mas era reconhecida por seu talento.

Sessenta anos depois, o Carnaval carioca vive um novo capítulo desse protagonismo feminino com Anitta como uma das compositoras do samba-enredo da Unidos da Tijuca. O que antes parecia exceção hoje se multiplica em diferentes frentes da folia.

Mulheres estão à frente de escolas de samba, comandam barracões, dirigem Carnavais e puxam o samba na avenida. Guanayra Firmino, presidente da Estação Primeira de Mangueira, é um exemplo dessa transformação.

Criada na própria comunidade, ela percorreu todos os espaços possíveis dentro da escola antes de assumir o comando. “Passei por todas as áreas dentro da Mangueira, fui componente, diretora, presidente de ala, vice-presidência e hoje estou na presidência.”

Apesar da trajetória consolidada, a presidente reconhece que o preconceito persiste: “Ainda tem muito isso de achar que uma mulher não vai dar conta, e o mais curioso é que muitas vezes esse preconceito vem de dentro do próprio samba”, afirma.

Para Guanayra, um dos marcos de sua gestão é justamente o que costumava ser visto como um território masculino: a organização financeira da escola. “Estamos com as contas em dia, o cronograma do Carnaval está dentro do esperado, não falta material, não falta pagamento de funcionários, a quadra e o barracão estão em ordem.”

Além da administração, Guanayra diz se orgulhar de ter criado um legado de inclusão e oportunidades. “Sempre que uma mulher chega a um espaço de poder, ela abre portas para outras. Isso significa ainda mais para mulheres da favela, como eu, que podem ver que é possível ser o que quiser. Tenho trazido os ‘crias’ da comunidade para cargos de confiança, e isso tem dado certo.”

Na Imperatriz Leopoldinense, Cátia Drumond se tornou a primeira mulher a presidir a escola. Filha de Luiz Pacheco Drumond, histórico dirigente da agremiação, ela cresceu nos bastidores do Carnaval e assumiu a missão de dar continuidade ao legado da família.

Apesar dos avanços, ela considera que ainda há barreiras contra a presença de mulheres. Aponta também o machismo como seu maior desafio. “Nós, mulheres, ainda precisamos nos impor mais em relação aos homens. Quando se fala de uma festa tradicionalmente comandada por homens, não seria diferente.”

Esse aumento da presença de mulheres em diferentes áreas do Carnaval inspira novas gerações. O histórico recente de Ludmilla, que puxou o samba-enredo da Beija-Flor ao lado de Neguinho da Beija-Flor, em 2023, mostram que o espaço das mulheres no samba está em expansão.

Tânia Bisteka, da Mangueira, é atualmente a única mulher a ocupar o cargo de diretora de barracão entre as escolas de samba do Rio. Sua trajetória é marcada pela quebra de paradigmas em um espaço historicamente associado ao trabalho masculino pesado.

Na Unidos de Padre Miguel, quem desafia expectativas é Lara Mara Rodrigues, de apenas 20 anos. Diretora de Carnaval da escola, ela surpreendeu o público ao discursar com paixão na Sapucaí antes do desfile de 2024, o que impulsionou a agremiação de volta ao Grupo Especial após 53 anos.

Seu trabalho envolve uma logística complexa: “Tenho de saber se a ferragem chegou, quanto precisa comprar em isopor, quantos artistas contratar, conversar com escultores, pintores, aderecistas”, diz Lara, que cresceu nos bastidores da Vila Vintém.

O samba-enredo deste ano, que homenageia Iá Nassô, fundadora do candomblé da Barroquinha, traz o verso “no meu egbé governado por mulher”, uma referência direta ao protagonismo feminino na própria gestão da escola.

O LEGADO DE DONA IVONE LARA E O FUTURO DO SAMBA

A jornalista e pesquisadora Rachel Valença, autora do livro “Serra, Serrinha, Serrano”, destaca que, mesmo décadas após o pioneirismo de Dona Ivone Lara, as mulheres continuam sendo minoria em espaços como a ala de compositores.

“A lista dos ganhadores de samba deste ano pode ter uma ou outra mulher, mas está longe de ser igualitário. Isso é sintomático”, afirma Valença.

“Dona Ivone nunca desistiu. A capacidade de compor e criar estava ali guardada a sete chaves, proibida e reprimida, mas ela nunca desistiu”, completa.

Dona Ivone, nascida em berço musical em 1921, já compunha sambas desde a juventude. O primeiro veio aos 12 anos, “Tiê”, ainda hoje um sucesso. Na década de 1940, já envolvida com o Prazer da Serrinha, depois com o Império, compôs sambas para serem cantados no terreiro das escolas, nenhum deles assinados por ela.

“A estratégia foi compor sambas em casa e entregá-los para o primo, Mestre Fuleiro, apresentar no Império como sendo dele. Ela não podia participar dessa parte da escola. Os sambas, supostamente de Fuleiro, foram um sucesso”, explica o jornalista Leonardo Bruno, autor do livro “Canto de Rainhas” (2021).

Ivone cantou com o Império Serrano pela primeira vez em 1961, e somente dois anos depois, em 1963, passou a ser considerada como parte da ala de compositores. Ela, contudo, jamais desfilou entre eles.