SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Um Completo Desconhecido”, que estreia nos cinemas brasileiros nesta semana, vai agradar demais a quem curte biografias musicais transpostas para a tela. Mas, para os fãs de Bob Dylan, o filme é um verdadeiro acontecimento, por uma série de razões.
A primeira diz respeito ao título do filme. De fato, a obra consegue arrancar o véu que cobre a intimidade de Bob Dylan, de 83 anos, desde o início de sua carreira, além de mostrar quem é, ou pelo menos quem era no início dos anos 1960, o músico que ganhou um prêmio Nobel por suas letras.
Conhecemos um Dylan inicialmente relutante, tímido até, mas que paulatinamente vai ganhando autoconfiança e se transformando em quase um monstro da indiferença e do desprezo para com os outros. Nos dias de hoje, a juventude o chamaria de tóxico.
Um segundo ponto importante é a interpretação de Timothée Chalamet. Como Dylan, o ator de 29 anos foi indicado pela segunda vez ao Oscar de melhor ator. A primeira foi por “Me Chame pelo seu Nome”, lançado em 2018. É o primeiro ator a receber duas indicações antes dos 30 anos desde James Dean. A cerimônia de premiação acontece neste domingo.
O que nem todo mundo sabe ao entrar no cinema é que Chalamet de fato canta e toca, com violão e gaita, todas as 40 músicas apresentadas. E não foram gravações que ele fez em estúdio para dublar no momento da filmagem. O ator de fato está cantando e tocando ao vivo enquanto é filmado, e o que os espectadores ouvem é essa interpretação ao vivo.
A atriz Monica Barbaro, que vive a cantora Joan Baez, hoje com 84 anos, incentivadora e amante de Dylan, e Edward Norton, como o seu mentor Pete Seeger, fazem o mesmo em suas participações musicais. Ambos foram indicados ao Oscar nas categorias de ator e atriz coadjuvantes.
Os três tiveram tempo para aprender. Anunciado há cinco anos, o filme precisou ser adiado por causa da pandemia e, depois, por causa da greve dos atores.
“Eu me sentir confortável fazendo isso foi uma alegria”, afirma Chalamet, sobre o fato de cantar e tocar de verdade. “Tive tanto tempo para me preparar que, quando começamos, foi muito divertido, e eu tinha confiança, o que tornou todo o processo realmente agradável, do início ao fim.”
A terceira e não menos importante razão por que “Um Completo Desconhecido” é um estouro é que Bob Dylan -que não tem interesse e jamais lê a respeito de Bob Dylan- chamou para um café o diretor James Mangold, que também fez “Ford vs. Ferrari”, de 2019, e “Johnny & June”, de 2005.
“Sobre o que é esse filme, afinal?”, perguntou Dylan, que sorriu ao ouvir a resposta de Mangold. “É sobre um jovem em Minnesota que se sente sufocado e desesperado e que deixa tudo -amigos e família- para trás e, com apenas alguns dólares no bolso, atravessa o país e cria uma nova identidade e faz novos amigos, encontra uma nova família e floresce, se torna bem-sucedido, então começa a sufocar novamente e foge”, lembra o diretor ao jornal britânico The Guardian.
Esse encontro evoluiu para diversos outros, incluindo um de leitura de roteiro em voz alta no qual Bob Dylan interpretou as falas de seu próprio personagem, e James Mangold, todas as outras. O músico também escreveu várias notas em sua cópia e, na última reunião, assinou e disse “vá com Deus”.
Entre as mudanças que Dylan pediu estava a do nome da namorada interpretada por Elle Fanning. Sua personagem se chama Sylvie Russo, no entanto ela é Suze Rotolo, que aparece abraçada ao artista na capa de seu segundo disco, “The Freewheelin’ Bob Dylan”. A justificativa foi respeito à privacidade de Rotolo, que, segundo Dylan, era uma pessoa reservada e que não buscava atenção pública, especialmente em relação ao relacionamento que tiveram. Ela também se tornou uma artista.
O papel de Sylvie Russo, no entanto, foi criticado por mostrar a moça mais como uma tonta apaixonada do que uma ativista envolvida com arte e movimentos sociais. É creditada a ela grande influência para a guinada política de Dylan a partir daquele álbum.
Esse é apenas um dos momentos em que “Um Completo Desconhecido” toma liberdades com a realidade, apesar da revisão de Dylan. “O filme é cheio de coisas que não aconteceram”, afirmou ao Guardian o autor do livro em que o longa se baseia, Elijah Wald. O jornalista musical, que é também músico de folk, lançou há dez anos o livro “Dylan Goes Electric! Newport, Seeger, Dylan, and the Night that Split the Sixties”, ou Dylan fica elétrico, Newport, Seeger, Dylan e a noite que dividiu a década de 1960.
“Mas a maneira como elas acontecem nessas cenas parece certa para mim”, disse Wald, sobre a produção. Dylan, por exemplo, visitou Woody Guthrie cinco dias após chegar a Nova York, em 29 de janeiro de 1961, no hospital psiquiátrico Greystone Park, em Nova Jersey, onde o pai da folk music estava internado devido a uma doença neurodegenerativa.
Essa visita de fato estava no topo da agenda de Dylan em Nova York e ele sempre disse que cantou sua música de homenagem “Song to Woody” para Guthrie no local. Mas o filme mostra o rapaz de 19 anos encontrando lá Pete Seeger, que logo o acolhe em sua casa, e retornando para outros encontros. Nada disso aconteceu de verdade. Outras liberdades semelhantes foram tomadas em prol da dramatização.
De qualquer forma, Dylan aprovou o produto final, em declaração no X, o antigo Twitter. “Timothée Chalamet é um ator brilhante, então tenho certeza de que ele será completamente crível como eu. Ou um eu mais jovem. Ou algum outro eu. O filme é tirado de ‘Dylan Goes Electric’, de Elijah Wald -uma ótima releitura de eventos do início dos anos 1960 que levaram ao fiasco em Newport. Depois de assistir ao filme, leia também o livro.”
Vale lembrar que o título do longa-metragem, algo que tanto agradou a Dylan, faz parte do refrão de sua maior música, “Like a Rolling Stone”. O documentário de três horas e meia de Martin Scorsese sobre esse período da vida do músico chama “No Direction Home”, ou sem o rumo de casa, outra rima do mesmo refrão.
Com seis minutos e seis segundos, “Like a Rolling Stone” extrapolou o padrão dos cerca de três minutos para entrar nas paradas radiofônicas e transformou Dylan numa estrela do rock no momento em que a cena folk estava se dissipando. É mais ou menos até aí que “Um Completo Desconhecido” acompanha sua vida.
UM COMPLETO DESCONHECIDO
Quando Estreia na qui. (27) nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Timothée Chalamet, Edward Norton, Elle Fanning
Produção Estados Unidos, 2024
Direção James Mangold