SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma brecha nas regras do Banco Central dá margem para que uma fatia de fintechs que atuam no Brasil operem sem fiscalização do órgão. Essa lacuna possibilitou que duas empresas (2GO Bank e Invbank) funcionassem fora do radar, lavando o dinheiro do PCC (Primeiro Comando da Capital), segundo investigação do Ministério Público de São Paulo que deu origem à Operação Hydra, deflagrada nesta terça (25).
Ao abrir o mercado brasileiro para fintechs, em 2013, o Banco Central permitiu que essas empresas atuassem na prestação dos serviços de pagamento sem estarem sujeitas à sua autorização, de modo a incentivar a inovação tecnológica e a inclusão financeira. Foi nesta época, por exemplo, que nasceu o Nubank.
No entanto, com a digitalização da economia, o boom de smartphones e o surgimento de centenas de novas instituições, o BC viu a necessidade de regular essas instituições. Em 2021, determinou que qualquer nova fintech precisaria estar credenciada junto ao regulador. Para as que já estavam no mercado, como é o caso das fintechs investigadas pelo Ministério Público, o credenciamento seria gradual, de acordo com o volume transacionado.
Os primeiros a solicitar autorização, já em 2021, seriam as instituições que operavam com mais de R$ 500 milhões por ano. Em seguida, vieram as de até R$ 300 milhões. Atualmente, devem se cadastrar as instituições de R$ 250 milhões até o fim deste ano. O escalonamento segue até 31 de março de 2029, quando todas as instituições de pagamento deverão ser autorizadas pelo BC para atuar.
O credenciamento, porém, é de responsabilidade da instituição. Apesar de terem volumes superiores aos determinados para o credenciamento o BC, 2GO Bank e Invbank não estão ligadas ao órgão, o que dificulta a sua investigação.
Nesse caso, a responsabilidade passa a ser dos bancos credenciados ao BC que prestam serviços bancários às fibtechs –instituições de pagamento não podem realizar operações de crédito. É de responsabilidade de qualquer instituição financeira reportar ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) anomalias e transações suspeitas.
Procurado, o Banco Central disse que “tem atuado para fortalecer a regulacao das instituicoes que prestam servicos financeiros, principalmente em ambientes digitais.”
O órgão citou como exemplo duas consultas publicas abertas recentemente. Uma delas para regular modelos de BaaS (sigla de Banking as a Service, que denomina a oferta de serviços financeiros por empresas de outros setores, como varejistas). A outra visa a restrição dos nomes relacionados a bancos, como “bank”, a instituições reguladas pela autoridade monetária.
Segundo a investigação, as fintechs 2GO Bank e Invbank receberam dinheiro de integrantes do PCC e o repassaram a contas bancárias de laranjas. As remessas recebidas pelos criminosos seriam, então, pulverizadas em várias transferências, que teriam como destino final contas de empresas controladas pelos criminosos.
“Existem ações do crime organizado que estão atingindo vácuos de fiscalização do próprio poder público”, disse o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa Oliveira e Costa, ao comentar a Operação Hydra.
Para advogados do setor, a operação desta terça evidencia a necessidade de se repensar a fiscalização de fintechs, dado o seu crescimento exponencial nos últimos anos.
“Há pouquíssima fiscalização em cima das fintechs. É preciso uma atuação mais próxima das instituições, com tecnologias de ponta. Não falta lei, falta estrutura e métodos mais inteligentes de combate a lavagem de dinheiro, que tende a evoluir para esquemas mais sofisticados”, diz Enzo Fachini, sócio do Fachini Valentini Ferraris.
“A supervisão do BC é proporcional aos riscos que os agentes oferecem ao mercado. O órgão tem visibilidade dos diversos setores e quem neles opera, mas, em relação às instituições de pagamento, só se debruça sobre os detalhes da operação a partir do atingimento de níveis de transações, a chamada volumetria”, diz Fabio Braga, sócio do Demarest.
Fernando Gardinali, sócio do Kehdi Vieira Advogados, também vê necessidade de mais investimentos em órgãos de inteligência. “A lei não é um fim em si mesmo se não for bem aplicada.”
Segundo João Fábio Azevedo e Azeredo, sócio do Moraes Pitombo Advogados, os criminosos estão explorando a falta de fiscalização do sistema financeiro.
“O controle dentro de uma fintech não é como o de um banco, apesar de elas também terem obrigações. Elas não são fiscalizadas tão de perto pelo BC como as instituições financeiras são. É mais uma questão de aplicação de lei do que falta de lei”, diz Azevedo e Azeredo.
Em nota, a ABFintechs (Associação Brasileira de Fintechs) diz que o setor sob rigorosos padrões de conformidade, seguindo integralmente as diretrizes estabelecidas pelo BC e demais normativas legais.
“Não há qualquer assimetria regulatória entre fintechs e grandes bancos nesse aspecto. Pelo contrário, a ABFintechs trabalha ativamente para garantir que esses padrões permaneçam elevados, acompanhando de perto a evolução regulatória e mantendo seus associados sempre informados e preparados para as melhores práticas do setor.”
A Associação diz ainda que participa de um comitê com a Polícia Civil, a SSP e o MPSP, com troca de informações e desenvolvimento de iniciativas estratégicas para fortalecer o combate a crimes financeiros praticados por meios digitais.
Procuradas, as fintechs 2GO Bank e Invbank não se manifestaram até a publicação.