SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Depois de o governo Lula ser criticado por movimentos de direitos humanos pela demora em recriar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) extinta por Bolsonaro e pela declaração do petista de que a ditadura “faz parte da história”, o ano de 2025 é promissor para o tema no país, afirma a presidente do colegiado, a procuradora da República Eugênia Gonzaga.
Designada novamente para o cargo que já ocupara de 2014 a 2019 na CEMDP, Eugênia enumera exemplos de que a maré mudou, e associa a tendência ao êxito do filme “Ainda Estou Aqui”, sobre a história da família do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura, sobretudo Eunice Paiva, sua mulher, interpretada no longa por Fernanda Torres. O filme e a atriz concorrem ao Oscar em 2 de março.
“É óbvio que isso veio ajudar a alavancar o trabalho da comissão, porque agora todo mundo já ouviu falar. Fala de retificação de certidões de óbito, [dizem], ‘ah, eu vi a cena’ [em que Eunice recebe a certidão de Rubens Paiva]. As pessoas já entendem com muito mais facilidade do que a gente está falando”, diz Eugênia.
A retificação a que ela se refere é um dos efeitos da onda: em dezembro, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou uma resolução determinando que certidões de óbito de vítimas da ditadura devem registrar, como causa mortis, “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.
A reabertura pela CEMDP do caso do desastre que matou o ex-presidente Juscelino Kubitschek, revelada pela Folha, também se valeu desse impulso, e deve ser seguida pela análise de episódios igualmente nebulosos, como o da morte do educador Anísio Teixeira, cujo corpo foi encontrado num fosso de elevador em 1971 a versão oficial, por muitos desacreditada, é de que foi um acidente.
Eugênia também celebra as recentes iniciativas do STF no caminho de punir crimes da ditadura apesar da Lei de Anistia e conta que cresceu o interesse de parlamentares em destinar emendas para custear os trabalhos da CEMDP, que não tem orçamento próprio.
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*Folha – Qual a posição da sra em relação à reabertura do caso da morte de JK?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* O que estamos olhando primeiro são os aspectos formais. Havia uma dúvida sobre o fato de já ter passado o período estabelecido para esse tipo de análise. Entendemos que esse aspecto está superado, porque é um pedido apenas para fins históricos, não tem indenização. Acho perfeitamente possível fazer a reabertura.
Mesmo assim, há os familiares. No caso do JK, tem o motorista também [Geraldo Ribeiro]. Se acabar se entendendo que não foi acidente, então temos ali duas vítimas. Por isso a providência preliminar de ouvir as duas famílias.
*Folha – Uma eventual oposição de um parente seria um impeditivo para dar sequência ao caso?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* A princípio não. Estamos falando, em primeiro lugar, de memória e verdade, porém de vítimas. Todos os nossos procedimentos têm como base chamar as famílias para acompanhar diligências, tomar a última decisão. Nunca tivemos um caso de recusa da família em relação a buscas. Se houver, a comissão deliberará a respeito.
*Folha – Podem ocorrer novas diligências?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* Podem, porque não tem coisa julgada sobre isso. E mesmo se houvesse Pode ser que não gere mais efeitos criminais ou de reparação. Mas um órgão de Estado criado para essa finalidade não fica impedido de analisar. E ainda mais que houve um pedido, e não é um único. Temos pelo menos uns cinco ou seis pedidos de reabertura de casos que nunca foram analisados, nem pela Comissão Especial nem pela Comissão Nacional da Verdade.
*Folha – O do [educador] Anísio Teixeira é um deles? Vocês deliberaram sobre isso também?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* Já existe procedimento sobre o do Anísio Teixeira, é uma situação muito parecida.
Nunca deliberamos. Aliás, quem deliberou foi a comissão anterior, do período Bolsonaro. Arquivaram tudo. E o caso do Anísio Teixeira arquivaram porque não foi requerido pela família, mas pelo grupo Tortura Nunca Mais. Mas nosso entendimento também é diferente. Só precisa ser requerido pela família quando você tem interesse indenizatório. Para fins históricos, a legislação não exige que seja requerido pela família.
*Folha – Há a possibilidade de se alterar a certidão de óbito do JK para dizer que que ele foi vítima do Estado?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* Defendemos que sim. A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos sistematizou em 2005 todos os então reconhecidos como vítimas da ditadura num relatório quase 360, a Comissão Nacional da Verdade parte daí para frente e reconhece outras pessoas e chega ao número oficial de 434 vítimas da ditadura.
Como a Comissão Especial não foi extinta, se nós chegarmos à conclusão de que há outras vítimas, podemos votar e reconhecer essas vítimas. Queremos incluir num novo relatório para 2026. Caso assim seja votado pela comissão, com certeza ele [JK] terá direito a uma retificação de sua certidão de óbito como vítima da ditadura.
*Folha – Suponho que desde a recriação da comissão, e sobretudo agora com essa divulgação do caso JK, tenham surgido resistências.*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* Você vai achar quem fale contra. Foi assim que extinguiram a comissão, dizendo que ela não tinha mais o que fazer. Claro que somos contra isso, tem parecer da AGU no processo que reabriu a comissão, dizendo que ela ainda tem o seu objetivo. Entendemos que a comissão continua tendo legitimidade, titularidade e obrigação de atuar nesses casos.
*Folha – A comoção causada pelo filme “Ainda Estou Aqui” ajuda em questões como essa? Em que medida vocês contam com isso para dar um gás nesses casos?*
*Eugênia Augusta Gonzaga -* Olha, tem sido incrível. O Nilmário [Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos] fala isso, eu falo a mesma coisa. Parece que esse é o ano da memória da verdade no país.
Quando a comissão foi extinta, já gerou uma comoção. Vários setores da sociedade ficaram contra, mesmo aqueles que nem eram tão afeitos ao tema. Ficou muito nítido que foi um ato arbitrário da extinção da comissão. E houve já uma mobilização muito grande das famílias, da sociedade civil, pela reinstalação da comissão.
E aí, por sorte, eu digo que foi mesmo uma sorte, um mês depois que a comissão estava reinstalada em 2024, o filme estoura. Tem essa receptividade maravilhosa, e é óbvio que isso veio ajudar a alavancar o trabalho da comissão, porque agora todo mundo já ouviu falar. Fala de retificação de certidões de óbito, [dizem], “ah, eu vi a cena” [em que Eunice recebe a certidão de Rubens Paiva]. As pessoas já entendem com muito mais facilidade do que a gente tá falando.
Eu citaria dois exemplos que demonstram essa boa onda do filme, essa abertura muito maior. Um é o fato de que, depois do filme, ministros do Supremo deram andamento a casos que não eram despachados há anos [sobre possível revisão da Lei de Anistia]. Inclusive o Flávio Dino coloca isso na sua razão de decidir.
E outro ponto interessante é que o Ministério dos Direitos Humanos não tem orçamento próprio e precisa cavar políticas relacionadas aos seus temas em outros ministérios. A comissão tem que contar com emendas parlamentares. Na primeira fase em que eu presidia a comissão, nós já conseguimos fazer o que fizemos graças a emendas parlamentares, que meia dúzia de deputados contribuíram. Hoje, nós fizemos o mesmo trabalho de angariar emendas, e apareceram quase 20 deputados e senadores, fomos até procurados por parlamentares querendo ajudar nos trabalhos. Eu credito isso a essa boa repercussão do filme e ao entendimento que ele conseguiu causar.
*Eugênia Augusta Gonzaga, 55*
Nascida em Guaranésia (MG), é mestre em direito constitucional pela PUC-SP. Procuradora regional da República em SP, preside pela segunda vez a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (a primeira passagem foi entre 2014 e 2019, sendo exonerada no governo Bolsonaro, que extinguiu o colegiado, recriado por Lula)