JOSUÉ SEIXAS
MACEIÓ, AL (FOLHAPRESS) – “Vou ali. Mais tarde, você prepara o jantar para os meus sobrinhos, que vou estar aqui às oito horas.”
Era uma terça-feira comum, aquele 4 de fevereiro de 1975, dia em que o alagoano Jayme Amorim de Miranda desapareceu no Rio de Janeiro. Militante do PCB (Partido Comunista do Brasil), ele saiu da casa em que morava no bairro do Catumbi para entregar documentos e nunca mais foi visto.
O jornalista e advogado, nascido em 1926 em Maceió, foi vítima da Operação Radar, que tinha como objetivo assassinar os principais dirigentes do partido.
Sua esposa, Elza Rocha de Miranda, 87, lembra que o último diálogo entre os dois não teve nenhum ar de despedida. “E o jantar foi feito, os meninos foram lá para a nossa casa. Até hoje ele não voltou. Fiquei esperando esse tempo todo e nunca tive nenhuma informação.”
Com quatro filhos pequenos, então com 14, 13, 9 e 4 anos, Elza se viu em situação semelhante à de Eunice Paiva, retratada no filme e livro de mesmo nome “Ainda Estou Aqui”. Ela ficou mais seis meses no Rio de Janeiro e voltou a Maceió após concluir um curso de cabeleireira, já que não tinha profissão.
Elza recebeu a Folha no apartamento em que vive no bairro de Jatiúca, em Maceió. Fazia um suco de abacaxi e pediu para colocar batom antes de ser fotografada. Sorria ao se lembrar dos trejeitos do marido e das nove vezes que tiveram de se mudar somente na capital fluminense para fugir da repressão.
O choro vinha de leve, e ela limpava as lágrimas conforme desciam, como se não devesse demonstrar fragilidade.
“Esse é um assunto que eu não gosto muito de falar. Quando assisti ao filme, senti uma angústia tão grande, que parecia que tinha uma coisa querendo sair de dentro de mim. Eu nunca fui de chorar. Foi muito duro passar por isso com quatro crianças”, lembra.
Ao contrário de Eunice, Elza e os filhos não tiveram nenhum contato com os oficiais da ditadura.
Assim como Eunice, Elza foi atrás de informações sobre o paradeiro de seu marido em todos os lugares que podia. Esteve em quartéis, delegacias e hospitais, enviou cartas para os militares e para o presidente Ernesto Geisel.
Sabia que o marido não estaria vivo, mas a confirmação só veio em 7 de fevereiro de 1996, quando recebeu a certidão de óbito.
Nesses pouco mais de 21 anos, a família se mobilizou e passou a participar ativamente de movimentos ligados aos desaparecidos políticos, além de batalhar pela redemocratização do Brasil.
Ainda havia esperança de que Jayme voltasse em 1979, quando houve a Lei da Anistia. “Pensávamos que ele podia não estar se correspondendo por medo de enfrentarmos alguma consequência”, lembra Olga Miranda, 64, filha mais velha do casal.
Os filhos do casal só souberam das atividades do pai após o desaparecimento dele. Até então encaravam tudo com normalidade, apesar de a rotina lhes impedir de ficar muito tempo em um só lugar.
O quarteto de filhos tem, além de Olga, Yuri, 63, Jayme, 59, e André, 54. As reações deles variaram, e Elza tinha de tentar contornar cada percalço.
“Uma vez, o Jayme viu num jornal a notícia do desaparecimento do pai e leu. Ele disse: ‘Se meu pai foi preso, então vou morrer’. Uma criança pensando nessas coisas e nem sabia de nada. Consegui convencer ele de que era uma notícia antiga, não nova. A Olga sonhava com o pai. Uma vez, ela pegou água e começou a derrubar na pia, porque tinha ouvido num sonho que o pai estava com sede”, diz.
Uma vez, o Jayme viu num jornal a notícia do desaparecimento do pai e leu. Ele disse: ‘Se meu pai foi preso, então vou morrer’. Uma criança pensando nessas coisas e nem sabia de nada. A Olga sonhava com o pai. Uma vez, ela pegou água e começou a derrubar na pia, porque tinha ouvido num sonho que o pai estava com sede
viúva de Jayme Amorim de Miranda
Detalhes sobre a morte do alagoano foram revelados no livro “Cachorros” (Alameda Editorial, 2024), do jornalista Marcelo Godoy. A obra é baseada em entrevistas com ex-agentes do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna).
Segundo esses depoimentos, após ser detido, Jayme foi levado a uma boate abandonada na cidade de Avaré (SP), onde foi mantido em cativeiro por 20 dias. No local, teria sido brutalmente torturado e, após sua morte, seu corpo teria sido esquartejado e lançado em um rio a mesma hipótese já foi apontada no caso de Rubens Paiva.
Neto de Jayme e Elza, Thyago Miranda, 38, diz que esses detalhes não foram repassados à avó por causa da crueldade.
A certidão de óbito de Jayme deve ser alterada até o mês de março, após resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), de dezembro de 2024, determinar que cartórios de registro civil lavrem ou corrijam os documentos de pessoas mortas e desaparecidas políticas.
O documento deve informar que a morte não decorreu de causa natural, mas sim de forma violenta, causada pelo Estado, “no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política, durante o regime ditatorial instaurado em 1964”.
A Comissão Nacional da Verdade identificou, em relatório divulgado em 2014, 434 pessoas desaparecidas ou mortas pela ditadura.
“Ainda temos a esperança de que haverá a punição aos militares envolvidos nesse caso. Dois deles já foram identificados e denunciados pelo Ministério Público Federal, mas não avançou por conta da Lei da Anistia. Caso a tese do ministro Flávio Dino sobre a ocultação de cadáver ser um crime continuado seja validada, teremos essas punições”, afirma Thyago.
Em dezembro do ano passado, Dino, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), defendeu que a Lei da Anistia não se estenda aos crimes de ocultação de cadáver, sob a argumentação de que é um crime permanente. A posição ainda será debatida pelo plenário da corte.