INÁCIO ARAUJO

 (FOLHAPRESS) – Se um bom filme depende de um bom vilão, como queria Hitchcock, “O Bastardo” não tem do que se queixar. O nobre Schinkel (Simon Bennebjerg) não é apenas mau, ele é o que se pode chamar de o mal. Talvez sua qualidade mais vistosa seja o hábito de estuprar as criadas de seu castelo e, não raro, matá-las. O restante pode-se deduzir.

A Schinkel caberá dizer a frase que norteia o filme: “a vida é caos”. Poderia ser bem a declaração de algum dirigente de extrema-direita disposto a jogar infâmias contra qualquer adversário nas redes sociais. E Schinkel, com efeito, não poupará esforços para impedir que os sonhos de seu rival, Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen) se realizem.

Kahlen é o ex-militar que tentará conquistar um título de nobreza se demonstrar que pode implantar uma colônia no urzal, onde muitos falharam antes dele. O urzal é um território desértico e normalmente habitado apenas por bandoleiros.

Estamos na Dinamarca, meados do século 18, e, sob a intriga evidente, corre outra, nas sombras. Khalen é o bastardo da história: é filho de um senhor de terras que ele nunca conheceu com uma cozinheira (violentada pelo senhor, deduz-se). Por conta disso, a patente de capitão do exército que conseguiu já parece uma prova de seu valor: não tem nobreza, nem pistolão. Estamos numa Dinamarca dominada pela aristocracia.

Schinkel está longe de ser o único aristocrata a defender seus privilégios. Apenas exorbita no sadismo e na vilania. Estamos, a rigor, numa luta em vários frontes: há o burguês que tenta se estabelecer por mérito e esforço contra os aristocratas que buscam manter seus privilégios; há homens e mulheres de valor contra os desprovidos de valor, porém com poderes.

Esse é o quadro básico do conflito. Tudo o mais se monta sobre algumas características capazes de tornar o filme bem-sucedido. Assim, a resiliência e a altivez de Kahlen, que afirma a superioridade moral contra pessoas que veem isso como uma ameaça a seus privilégios.

Ele poderia atirar, mas não dá um tiro, como alguns grandes pistoleiros do faroeste, que fazem da contenção uma virtude. E estamos, na verdade, numa espécie de faroeste às antigas.

Mas Kahlen também defenderá uma menina cigana dos preconceituosos agressivos que aparecem (maneira de dizer que a rejeição ao estrangeiro —o imigrante, no caso da gente de hoje, para quem o filme, afinal, se endereça— não tem justificativa na realidade).

Esse enfrentamento entre uma classe construtiva (a burguesa) e outra estagnada (a dos aristocratas) encontra na região da urze um lugar perfeito para se estabelecer. A aridez do solo encaminha o conflito e contrasta com a beleza extraordinária das paisagens. Um choque puxa outro e impede que o filme mergulhe nos abismos do “cinema de qualidade”.

É possível dizer que vez por outra a direção de Nikolaj Arcel pesa a mão e constrói um Kahlen até mesmo um tanto masoquista (numa simetria pouco desejável com Schinkel), mas no geral consegue transmitir seu ponto de vista: numa aventura, o resultado final importa muito, mas não é tudo: os valores que alguém consegue impor (e transmitir ao espectador) são, de certa forma, o objetivo final.

Embora aceitando as mil e uma intervenções do acaso (algumas felizes, outras, não) Kahlen evita que a vida se entregue à ausência de sentido (o caos).

Num mundo em que o dinheiro se torna cada vez mais o valor único e final (o mundo de hoje), uma voz discordante é algo a saudar.

O BASTARDO

– Avaliação Muito bom

– Quando Em cartaz nos cinemas

– Classificação 18 anos

– Elenco Mads Mikkelsen, Amanda Collin, Simon Bennebjerg

– Produção Alemanha, Dinamarca, Noruega

– Direção Nikolaj Arcel