SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As ruas têm uma alma encantadora, jurava ele. Há ruas sinistras, escreveu, e também as nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história e outras tão velhas que contam a evolução de uma cidade inteira.

A intimidade com as ruas –e o que trazia delas para compartilhar com os leitores– fez de João do Rio um dos escritores mais famosos de seu tempo, no começo do século 20. Tão conhecido que seu velório arrastou 100 mil pessoas pela capital fluminense.

Mas a posteridade não foi tão generosa com o autor, cujo nome de verdade, não custa lembrar, era Paulo Barreto.

Fora da cidade onde viveu e escreveu seus principais textos, as décadas o colocaram em uma relativa obscuridade –que agora talvez possa ser revertida com a homenagem que ele recebe na Festa Literária Internacional de Paraty, no mês que vem, e algumas edições no mercado.

O esquecimento é algo que acometeu boa parte da geração dele, espremida entre a sombra de Machado de Assis e a Semana de Arte Moderna de 1922. Não à toa, o autor é muitas vezes classificado como pré-modernista, rótulo ingrato que acaba achatando as particularidades dos autores.

Como outros escritores assim, João do Rio até viveu um certo redescobrimento nas universidades no século 21. Para se ter ideia, dados do Ministério da Educação mostram que houve duas teses sobre ele nos anos 1980, número que salta para 70 nos anos 2000 e recua para 52 nos anos 2010.

São os números que não se comparam a outro escritor da época que também viveu seu período de obscuridade: Lima Barreto. O interesse acadêmico na obra do autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” salta de dez teses, nos anos 1980, para 301, nos anos 2000, e depois continua no mesmo patamar.

É inevitável tentar um paralelo entre a trajetória dos dois. Enquanto João teve uma carreira em ascensão, Lima viveu um final dramático, corroído pelo alcoolismo. Mas a fama se inverteu depois da morte deles.

Uma das explicações seria o gênero no qual Paulo Barreto ficou mais famoso.

“Acho que há algo inerente à própria crônica, que ainda tem essa pecha de gênero menor, muito ligado à atualidade”, diz Graziella Beting, organizadora do volume de crônicas, folhetins e obras de teatro do autor, publicado pela Carambaia. “Mas a crônica é formadora da nossa literatura.”

O próprio suporte –o jornal impresso, que tende a se perder no tempo– pode ter tornado difícil a perpetuação dessa obra, ao deixá-la mais dispersa do que se tivesse sido toda reunida em livros. Romances e contos, como os que deixou Lima Barreto, parecem se cristalizar mais facilmente no tempo.

“O grande trunfo do João do Rio é esse gênero híbrido, meio ensaio inglês, meio precursor do novo jornalismo, que é a coisa mais difícil de encaixar. A crônica, que nos anos 1950 ganha poder, é muito maltratada editorialmente”, diz Ana Lima Cecílio, curadora da Flip neste ano.

Já João Carlos Rodrigues, biógrafo que ajudou a resgatar o autor e lança uma edição revisada de “João do Rio – Vida, Paixão e Obra” (Civilização Brasileira), culpa os outros rumos que a literatura brasileira tomou.

“Nos anos 1930, começou o apogeu do regionalismo, e os cariocas ficaram como algo que já era. Era uma literatura cosmopolita, mas ficavam colocando para baixo, como algo que não era muito brasileiro, porque não falava de mandacaru e acarajé”, diz Rodrigues.

Há também a política, já que a obra de Lima parece responder de forma mais clara a anseios contemporâneos. Os dois são escritores hoje classificados como negros, escrevendo pouco depois da abolição da escravatura, e tiveram posturas praticamente opostas nesse assunto.

Tinham visões díspares em vários assuntos, como o futebol, que Lima odiava, o voto feminino, que João apoiava.

Enquanto Lima denunciou a sociedade racista em suas obras e foi penalizado por isso, João foi um reprodutor de estereótipos raciais, sobretudo no clássico “As Religiões do Rio” –e sua obra indica que nem se via como negro.

A historiadora Juliana Barreto Farias, da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira, é uma das que apontam o olhar racista em textos de João do Rio sobre africanos na capital fluminense.

No textos sobre as religiões afro-brasileiras, é o autor costuma se referir aos negros como “eles”, em oposição a “nós”. Com frequência, os africanos remanescentes da cidade são descritos com adjetivos animalescos, e mães de santo são chamada de feiticeiras, em tom pejorativo.

“João do Rio parece muito distante dessa cidade africana, é uma cidade fora de lugar que, ao mesmo tempo, exerce um fascínio sobre ele. É um olhar de quem se sente de fora e tem certeza de que são pessoas inferiores. Ao mesmo tempo, há uma aproximação”, diz Farias, apontando o valor documental das reportagens dele sobre as religiões de matriz africana.

De todo modo, tanto sua obra quanto a de Lima Barreto em tese se prestariam ao mesmo resgate a partir da identidade dos dois, tão em voga na crítica e no mercado.

João do Rio, além de negro, era gordo e gay, e o fato de se ver como parte da classe dominante não impediu que sofresse preconceitos.

O próprio Lima Barreto, além de zombar da homossexualidade do autor ao transformá-lo em um personagem de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, também se refere indiretamente a ele como “uma mescla de suíno e símio”.

“Ele não se afirmava com essa identidade, mas tinha que se ver assim, porque entre as acusações que faziam a ele estava a de ser mulato. Diziam que as tias dele pareciam macacas. Ele foi muito atacado, deve ter sido algo traumático”, afirma João Carlos Rodrigues.

Para a curadora da Flip, as contradições de João do Rio o tornam um autor fértil para o debate em uma festa literária.

“Ele olha a cidade ao rés-do-chão, com esse olhar enviesado, mas também é um cara entre a classe alta e baixa, entre ser negro e não ser, entre o jornalismo e a literatura. É um espaço de passagem, que no fim é a própria rua.”