FOLHAPRESS – Uma das formas de ver “Ao Vivo [Dentro da Cabeça de Alguém]” é como uma profissão de fé na arte. Primeiro na presença forte da atriz Renata Sorrah. Com mais de 50 anos de carreira, ela é o coração do espetáculo —tudo acontece a partir de fragmentos de suas memórias de atriz.

Depois, na confiança do grupo de que a sensibilidade e os afetos mobilizados pelo teatro podem se contrapor aos ventos obscurantistas que sopram no mundo todo. Assim como em “Sem Palavras”, trabalho anterior da Companhia Brasileira de Teatro, também “Ao Vivo” busca criar um instante de protesto e de resistência pela via da arte.

Muitas das cenas são como manifestos. Para isso, os textos entrelaçam material lírico, onírico e ficcional com comentários sobre a política recente do Brasil. Nesses momentos, os artistas da cena voltam-se para frente do palco, assumem um tom afirmativo e fazem com que a manifestação política do que dizem seja atravessada também por suas reminiscências e pelas identidades dissidentes que seus próprios corpos invocam.

Mas se tal dinâmica teatral do espetáculo produz momentos marcantes, ela também convive com certo idealismo. O empenho do coletivo em encontrar formulações estético-políticas para decifrar os impasses da atualidade coexiste com um tipo de celebração vaga do poder do teatro. Em vários momentos, o espetáculo parece apenas exibir, com orgulho, a sensibilidade virtuosa de cada um dos artistas em cena.

Tal otimismo com a arte cria também uma leitura enviesada da peça “A Gaivota”, clássico da dramaturgia mundial, escrito pelo russo Anton Tchékhov em 1896, e um dos materiais de base para o espetáculo —além de ser um dos motes no mergulho das lembranças de Renata Sorrah, que montou a peça em 1974.

A dor do mundo dos artistas da Companhia Brasileira de Teatro parece se conectar com a sensação de desajuste de algumas das personagens da peça de Tchékhov, como, por exemplo, o jovem Kostantin Gavrílovitch Trepliov, que defende furiosamente um teatro novo de formas mais livres e mais vivas —”formas novas são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada”— mas tem uma vida marcada por uma série de infortúnios, isolamento e melancolia.

As frustradas pretensões artísticas do jovem aparecem logo no início de “A Gaivota”, quando ele apresenta um espetáculo para sua mãe, famosa atriz do teatro convencional russo, e para um grupo de amigos da família, todos mais ou menos ligados a certa aristocracia decadente.

Mas, se o público é composto por ególatras, imbecis e avoados, também a peça de Trepliov é um exercício presunçoso e meio ridículo de lirismo vazio e efeitos kitsch de cena —a personagem pode ser lida, inclusive, como uma sátira dos experimentos literários simbolistas em voga na Rússia da virada do 19 para o 20. Trepliov quer se destacar da vida ao qual está preso. Ele se acha superior a toda aquela gente medíocre. Mas ele é também parte daquilo.

A empatia e talvez até um tipo de identificação do grupo com as personagens de Tchékhov intensifica a sensação de fragilidade nas intenções políticas do espetáculo. Assim como no projeto teatral de Trepliov na peça do século 19, “Ao Vivo” também confia desmedidamente no ambiente mistificador que produz, nos efeitos de cena, na recitação grandiloquente, no contato mágico com o mistério dos sonhos.

Se vivesse no Brasil de hoje, o velho Tchékhov decerto teria ojeriza ao conservadorismo em marcha. Contudo, provavelmente também desconfiaria dos dualismos fáceis e da atmosfera de superioridade moral com a qual o teatro muitas vezes se veste para se contrapor ao horror.

AO VIVO: DENTRO DA CABEÇA DE ALGUÉM

– Avaliação Bom

– Quando Qui. a sáb., às 20h; dom, às 19h. Até 1º de dezembro

– Onde Teatro do Sesi-SP – av. Paulista, 1313, São Paulo

– Preço Gratuito

– Classificação 16 anos

– Link: https://www.sesisp.org.br/eventos