CLÁUDIA COLLUCCI

GENEBRA, SUÍÇA (FOLHAPRESS) – A pandemia de Covid e as guerras em Gaza, Sudão e Ucrânia deixaram incontáveis pacientes sem acesso a tratamento de câncer em vários países, cenário que deve ser ainda mais agravado pelos desastres naturais causados pelas mudanças climáticas.

A situação foi discutida no Congresso Mundial de Câncer, que acontece em Genebra (Suíça). Segundo pesquisadores, há enormes lacunas em pesquisas e de investimentos nessas regiões, e só mesmo uma iniciativa continental e global será capaz de enfrentá-las.

Uma análise do Portsmouth Hospital University NHS Trust mostra, por exemplo, que só a guerra entre Rússia e Ucrânia já provocou um aumento de 3.600 mortes relacionadas ao câncer desde o início do conflito.

O Banco Mundial estima que cerca de 1,2 bilhão de pessoas vivem em países definidos como frágeis ou em conflito.

“Em Gaza, temos 10 mil pacientes com câncer sem acesso a cuidados porque os hospitais foram destruídos”, disse Rana Ghafary, diretora de advocacia e assuntos governamentais da King Hussein Cancer Foundation em Amã, na Jordânia. Segundo ela, mais de cem pacientes de Gaza foram transferidos para tratamento na Jordânia.

O mesmo cenário tem se repetido em outras áreas de conflitos onde, segundo os especialistas, há atrasos de diagnóstico, de tratamento e falta de acesso aos serviços de saúde.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) tem conseguido organizar coordenações regionais para o monitoramento de pacientes mais vulneráveis desde o início dos conflitos.

Na guerra da Ucrânia, por exemplo, oncologistas puderam rastrear alguns dos pacientes e acompanhá-los à distância no Egito e nos Emirados Árabes, onde mil doentes foram recebidos em julho.

Entre as nações africanas, onde há cerca de 40 milhões de refugiados, também poderia haver uma coordenação regional com impacto semelhante, mas as dificuldades são ainda maiores.

“A África normalizou os conflitos e o que vimos, infelizmente, nos últimos dois anos, é que os sistemas de saúde não funcionam de forma eficaz, onde os pacientes vão consultar com seis profissionais de saúde antes de ter um diagnóstico de câncer”, afirmou Miriam Mutebi, professora assistente na Faculdade de Medicina da Universidade Aga Khan em Nairóbi, Quênia.

“Agora, temos uma crise climática piorando, crises geopolíticas e conflitos, dívida e pobreza afetando quase todos os países, incluindo países de alta renda que foram relativamente poupados até recentemente”, disse Richard Sullivan, do King’s College de Londres.

Segundo a mastologista Maira Caleffi, presidente da Femama (federação das instituições filantrópicas de apoio à saúde da mama), as enchentes no Rio Grande do Sul, por exemplo, causaram impactos na jornada de pacientes com câncer que ainda estão sendo medidos.

De acordo com os pesquisadores, há lições sendo aprendidas que merecem ser replicadas. Na guerra da Ucrânia, por exemplo, o monitoramento de um grupo de pacientes de câncer desde o início do conflito permitiu que os oncologistas os rastreassem e continuassem seus cuidados no vizinho Egito e nos Emirados Árabes Unidos, onde mil pacientes foram recebidos em julho.

Uma coordenação semelhante entre as nações africanas, um continente com cerca de 40 milhões de refugiados, poderia ter um impacto semelhante no fornecimento de tratamento urgente contra o câncer, disseram os especialistas.

“A África normalizou os conflitos e o que vimos infelizmente nos últimos dois anos é que os sistemas de saúde não funcionam de forma eficaz, onde os pacientes verão seis profissionais de saúde antes de um diagnóstico de câncer”, afirmou Miriam Mutebi, consultora e oncologista cirúrgica de mama e professora assistente na Faculdade de Medicina da Universidade Aga Khan em Nairóbi, Quênia.

“Isso é agravado por barreiras sociais e culturais que já diminuem intrinsecamente o acesso. Quando você adiciona uma camada de conflito, isso praticamente vira fumaça.”

Em conferência para a imprensa, organizada pelo UICC (União Internacional para o Controle do Câncer), pesquisadores também discutiram sobre o impacto da Covid na queda de diagnósticos de câncer.

“Todos nós lemos, falamos e experimentamos a Covid. Agora estamos quantificando muitos dos medos que tínhamos sobre diagnósticos errados e doenças em estágio avançado como consequência da pandemia”, disse Jeff Dunn, presidente do UICC.

Estudo preliminar da Parceria Internacional para Referência em Câncer comparou dados sobre a ocorrência e o estágio do diagnóstico de câncer na Austrália, Canadá, Dinamarca, Irlanda, Nova Zelândia, Noruega e Reino Unido, antes e durante a pandemia.

Os resultados mostram que o Reino Unido teve as maiores e mais sustentadas quedas no diagnóstico de câncer de pulmão, mama, colorretal e pele durante 2020, em relação a outros países.

Para Isabelle Soerjomataram, do Iarc (Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer), o que torna o estudo realmente único é o fato de haver dados comparáveis de bancos de dados de alta qualidade, que incluem todas as fontes de informações do país.

Embora sejam todos países de alta renda, a pesquisadora reforça que a ideia não é falar sobre a renda. “A ideia é ter os dados da melhor qualidade.”

Segundo ela, a experiência mostra que mesmo países desenvolvidos responderam de forma muito diferente no que diz respeito aos cuidados de pacientes com câncer durante a pandemia.

Na Irlanda do Norte e no País de Gales, por exemplo, houve queda de 30% no diagnóstico de câncer de pulmão. Na Nova Zelândia, foi de 11%.

Embora o estudo não tenha incluído dados da América Latina, a pesquisadora disse que alguns trabalhos realizados no Brasil mostram que o impacto foi grande tanto em diagnóstico quanto em tratamentos. Porém, não há dados nacionais sistematizados.

Uma das pesquisas, da Fiocruz Pernambuco, por exemplo, analisou o impacto na atenção do câncer de mama no primeiro ano de pandemia na rede de saúde pernambucana. Houve queda de consultas com a mastologia (46,3%), de ultrassonografias (41,5%), biopsias (49,6%), casos novos (34,8%) e cirurgia (34,6%).

Segundo Caleffi, da Femama, em muitos locais o impacto da pandemia ainda persiste. “O rastreio [do câncer] ainda não pegou de volta, as pessoas não retomaram o nível de antes da pandemia.”