ALESSANDRA MONTERASTELLI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um homem caminha com um cesto nas costas por uma imensidão de areia, deixando atrás de si um lastro de pegadas secas. No horizonte, algumas árvores parecem ser um oásis em meio ao deserto. O problema é que a foto, na realidade, é um retrato do leito nu do rio Negro, um dos principais afluentes do rio Amazonas.
O clique de Lalo de Almeida, fotógrafo da Folha de S.Paulo, foi feito em outubro do ano passado, período de seca na região. Mas, devido às mudanças climáticas, seus efeitos foram mais intensos e prolongados do que o comum, e até hoje, mesmo após a época de chuvas de dezembro e janeiro, a bacia ainda não encheu por completo.
A imagem foi a vencedora regional da América do Sul na categoria foto única na World Press Photo, uma das mais importantes premiações internacionais de fotojornalismo. Após o anúncio dos ganhadores, em abril, agora há um tour mundial por 80 países com a exposição das 129 fotografias contempladas, abrindo em São Paulo neste sábado, na Caixa Cultural.
A edição deste ano é particularmente especial para o Brasil. Depois de a mostra retornar ao país pela primeira vez após a Covid-19, quatro fotógrafos brasileiros foram vencedores, um recorde inédito até agora.
Gabriela Biló, da Folha de S.Paulo, teve menção honrosa por retratar os ataques do 8 de janeiro, enquanto Felipe Dana e Renata Brito foram premiados pelo trabalho “À Deriva”, sobre a história de um barco vindo da Mauritânia, cheio de homens mortos, encontrado na costa da ilha caribenha de Tobago.
A Amazônia, diz Lalo, sempre desperta olhares curiosos e preocupados por onde passa. “As pessoas têm muito mais interesse pelas questões ambientais fora do Brasil. O brasileiro trata a Amazônia como um território distante, não sente ela como parte do Brasil, mas outro planeta”, diz o fotógrafo.
Sua foto parece uma premonição do que aconteceria no último mês, quando incêndios se espalharam pela Amazônia e chegaram à região central do país, queimando animais e floresta em seu caminho, enquanto a fumaça cobre o céu de cidades como Brasília e São Paulo e eleva a poluição do ar a níveis insalubres.
Se antes a floresta pegava fogo apenas quando era derrubada, graças a sua umidade, agora, com a seca, as queimadas acontecem com a floresta em pé.
“Quando a fumaça chega aqui, as pessoas começam a pensar, ‘é assim que as pessoas lá em Porto Velho ficam nessa época da seca?’ As pessoas começam a ter um pouco mais de empatia. O grande desafio do jornalismo ambiental é você engajar as pessoas, e nesse universo de mídias sociais, conseguir prender a atenção da pessoa que tá dando ‘scroll’ por um milhão de coisas.”
As mais impactadas, porém, são as comunidades ribeirinhas, que dependem do rio para a locomoção e acesso a postos de saúde, mercados e escolas. “Quase não existem estradas na Amazônia. Quando esses rios secam, a vida dessas comunidades fica inviabilizada”, diz Lalo. “Eles [ribeirinhos] estão conectados a esses ciclos naturais, da chuva e da seca, para plantar, colher e pescar. A gente não sabe se essas populações vão conseguir se adaptar, a essa nova realidade climática que está se impondo muito rapidamente.”
O tema das mudanças climáticas apareceu em todas as regiões abordadas por fotógrafos do concurso. Exemplo são o aumento do nível das águas em Fiji, na Oceania, o aumento de incêndios na Austrália ou, ainda, protestos na Alemanha contra a mineração de carvão.
“O fotojornalismo aborda assuntos da atualidade para conscientizar o público, e esse assunto [das mudanças climáticas] é um dos mais relevantes e será uma grande marca para as próximas gerações”, diz Raphael Dias e Silva, curador da mostra na Caixa Cultural.
As guerras Israel-Hamas e da Ucrânia também tiveram destaque no concurso. “Uma Mulher Palestina Abraça o Corpo de Sua Sobrinha”, do fotógrafo palestino Mohammed Salem, venceu na categoria foto do ano. A imagem mostra uma mulher segurando com firmeza e desespero o corpo de uma menina, embalado em um lençol branco, que ela encontrou no hospital após ataques aéreos israelenses na Faixa de Gaza. “É uma imagem que vai ficar nos livros de história para memorizar esse evento horrível que está acontecendo”, diz Silva.
Assim como a foto do copo de um menino sírio encontrado em uma praia da Turquia, que chocou o mundo em 2015 e se tornou símbolo da crise migratória, não é possível ver o rosto da criança palestina, permitindo que o espectador se projete nesse lugar de dor extrema. “É um momento tão singelo que qualquer pessoa consegue se entender e se relacionar com aquela dor”, afirma o curador.
Outra foto de destaque foi a de Biló, que recebeu menção honrosa ao retratar o 8 de janeiro em Brasília. “O crescimento da extrema-direita é um fenômeno mundial. As pessoas sabem quem é [Jair] Bolsonaro e que o Brasil sofreu uma tentativa de golpe, e conseguem traçar um paralelo com a realidade em outros países”, diz ela.
Naquele dia, relembra, muitos de seus colegas jornalistas foram atacados e tiveram seu equipamento quebrado ou roubado pelos invasores. “O ódio à imprensa sempre existiu, mas eu nunca me senti tão alvo. Nesse dia, a imprensa era alvo.”
Enquanto a repressão contra a imprensa se alastra pelo mundo, o fotojornalismo parece se tornar cada vez mais necessário frente à avalanche de imagens sem contexto nas redes sociais e às imagens falsas geradas por inteligência artificial.
“A credibilidade que a gente tem no jornalismo é o que nos restou nessa inundação de fake news”, afirma Biló. “Estamos garantindo que a nossa história seja contada, e não por máquinas.”
WORLD PRESS PHOTO EXHIBITION 2024
Onde Caixa Cultural – pça. da Sé, 111, São Paulo
Preço De ter. a sáb., das 10h às 18h; dom. das 9h às 17h.