Relatório apoiado pela Coalizão Energia Limpa defende revisão no planejamento do setor
ALEXA SALOMÃO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Especialistas da área de clima e energia estão somando esforços para mobilizar os órgãos públicos a
rever o planejamento da geração elétrica no Brasil considerando as projeções de estresses climáticos. Os cenários apontam secas mais prolongadas, com muito sol e ventos, no Norte e no Nordeste, e chuva farta no Sul. Seria como viver o fenômeno El Niño por momentos mais prolongados.
As projecoes indicam que o aumento da temp eratura no Brasil será superior a media global. O aumento tende a ser de pelo menos 4°C em média, o que vai comprometer um pilar da geração energética no país, as hidrelétricas.
Os cenários constam no relatório “Vulnerabilidade do setor eletrico brasileiro frente a crise climatica global e propostas de adaptação”. O documento foi lançado nesta sexta-feira (26) pelo ClimaInfo, em nome da Coalizão Energia Limpa.Cerca de metade do abastecimento do Brasil é feito por hidrelétricas, que também garantem potência e estabilidade ao sistema, funcionando como suporte para evitar quedas de energia. Essas usinas já sofrem com variações da temperatura. A seca de 2014 a 2015 fragilizou boa parte dos rios. Em 2021, bacias foram castigadas pela pior crise hídrica dos últimos 90 anos.
“Os registros mostram que evento climáticos extremos estão aumentando, tanto na frequência quanto na magnitude”, diz um dos pesquisadores do relatório, Lincoln Muniz Alves, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e que também atuou como autor líder do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima).
Os especialistas, no entanto, afirmam que há resistência do governo e demais planejadores do sistema elétrico em mudar os modelos no setor. Um exemplo é a postura em relação as térmicas.
Desde a histórica crise de abastecimento, em 2000, quando a água mingou nos reservatórios das hidrelétricas, o seguro apagão é feito por térmicas movidas a combustíveis fósseis. A sistemática encareceu a energia brasileira, mas afastou o desabastecimento.
O relatório rejeita essa saída tradicional, inclusive as usinas a gás. Acompanhando a tendência global, recomenda a eliminação dessa fonte até 2050. O governo neste momento faz exatamente o contrário, concentra esforços para aumentar o número de térmicas a gás, construir gasodutos e abrir uma nova fronteira de exploração na margem equatorial.
“O Brasil perdeu a janela do gás e do petróleo e tenta recuperar isso agora, quando o mundo já entrou nas renováveis”, diz José Wanderley Marangon, secretário de P&D do Inel (Instituto Nacional de Energia Limpa).
Os especialistas acreditam que investir em solar e eólica é a alternativa mais adequada quando o combate às mudanças climáticas exige restrição de emissões dos gases de efeito estufa, e esperam sensibilizar os reguladores brasileiros neste momento de mudanças.
“Entre 2014 e 2015, após uma ampla pesquisa, fizemos o alerta sobre a dinâmica do clima, que não havia sido considerada no planejamento do setor elétrico nem pelo Ministério de Minas e Energia. Eu diria que, agora, ligaram o sinal amarelo “, afirma Marangon.
Segundo o estudo, o aumento de secas e ventos, no Norte e no Nordeste, naturalmente favorece a expansão das fontes renováveis. Elas já representam quase 25% da geração do país, e os seus projetos estão concentrados nessas áreas. Mas, como nada é tão simples quanto parece, essa vantagem também impõe desafios.
“Se o parque gerador vai crescer ao Norte e Nordeste, então, será preciso ampliar ainda mais os investimentos no sistema de transmissão para transportar essa energia para o resto do país”, explica Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, que apoia o relatório.
A radiação solar tende a aumentar, o que vai demandar placas fotovoltaicas cada vez mais resistentes. Os ventos podem ser bem mais fortes, então, também será preciso reforçar as estruturas de suporte dos parques. Ventos inesperadamente mais fortes já arremessaram placas em projetos na região.
Por outro lado, o clima mais árido limita a construção de novas usinas sem reservatórios, as chamadas fio d’água. É o caso do complexo do rio Tapajós, com um conjunto de usinas no Pará, que os especialistas recomendam que seja engavetado.
Nas secas severas durante o verão, essas usinas também tendem a demandar um volume maior de água da chuva para se recomporem e voltarem à plena carga. Belo Monte, Santo Antonio e Girau são usinas a fio d’água que hoje complementam o abastecimento do sistema no meio do ano, quando chove na região Norte, mas é período seco na região central do país e no Sudeste, onde estão os maiores centros consumidores.
Uma sugestão para prolongar o funcionamento de hidrelétricas e centrais de médio e pequeno porte em períodos mais críticos é fazer a conversão para operarem como usinas reversíveis. Grosso modo, elas adotam um sistema interno que devolve a água ao reservatório para aproveitamento contínuo.
No Sul, o prognóstico é de mais chuvas. Mas o futuro de Itaipu e de uma série de 40 usinas no rio Paraná é incerto. A bacia está na Zona de Convergência do Atlântico Sul, onde os modelos climáticos divergem quanto ao aumento ou diminuição das chuvas.
Também não há conclusão fechada sobre o clima no Sudeste, apesar de os pesquisadores identificaram tendência a secas e elevação da temperatura.
“Essa é uma região de transição, sem clima definido, onde podem ocorrer fenômenos com características tanto no Sul quanto de parte do Norte e Nordeste”, diz o pesquisador Muniz Alves. .”É uma espécie de zona cinzenta, que apresenta desafios para a ciência quando queremos fazer projeções.”
O Sudeste é estratégico no caso das hidrelétricas. Lá estão, por exemplo, as usinas do Rio Grande, Furnas, Água Vermelha, Mascarenhas de Moraes e Maribondo, consideradas a parte vital da caixa d’água do Brasil. Sem chuva nesse conjunto, o abastecimento fica incerto.
Nas secas, acreditam o especialistas, é preciso fortalecer o fornecimento vindo de outras regiões, mas também reforçar e fazer uma gestão mais fina da chamada GD (geração distribuída). Basicamente, corresponde no Brasil ao abastecimento via placas solares instaladas em telhados de residências ou empresas, ou em fazendas em áreas no interior.
Os especialistas também afirmam que é preciso investir na formação de estoques de energia solar com a adoção em escala de baterias, que são uma raridade atualmente, bem como reforçar investimentos no hidrogênio, particularmente no verde.
Barata, um dos mais experientes técnicos do setor de energia, destaca que não é uma tarefa fácil coordenar o sistema elétrico com tantas novas variáveis, mas o desafio está posto e precisa ser enfrentado.
“O operador do sistema pode gerenciar e coordenar a operação de hidrelétricas e térmicas, mas não consegue fazer o mesmo, com o modelo atual, para solares e eólicas”, afirma ele. “A complexidade do setor aumentou, e temos de debater novas saídas.”
A avaliação das entidades é que, como neste momento há chuva abundante, há tempo para planejar essas e outras mudanças.
“É o momento ideal para repensar o que queremos para o setor de energia e rever o seu arcabouço, e, como sociedade civil, acreditamos que podemos contribuir nesse debate e buscamos diálogo com o poder público”, diz Carolina Marçal, analista do Instituto ClimaInfo.
Além da entidade, fazem parte da Coalizão Energia Limpa IED (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente), Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), Instituto Internacional Arayara e Instituto Pólis.