Dalia Ventura
Role,BBC News Mundo
25 maio 2024
“A admiração é uma surpresa repentina da alma.”
Essa foi a definição do famoso filósofo, matemático e cientista francês René Descartes (1596-1650).
Ele definiu a admiração como “a primeira” das seis paixões primitivas, na sua obra As Paixões da Alma, de 1649. E esta paixão é a que arrebata a filósofa belga Helen de Cruz.
“Descartes teve uma visão profunda com a ideia de que existem seis emoções: a admiração, o amor, o ódio, a tristeza, a alegria e o desejo”, disse ela à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Todas essas emoções são fundamentais, mas não são todas iguais. E a admiração é a mais diferente entre elas.
“Todas estas emoções fazem avaliações: quando você odeia alguma coisa, você diz ‘não é útil para mim’; quando ama, diz ‘é útil’. Se algo faz você feliz, você pensa que é bom, mas, se entristece você, é ruim”, explica Cruz.
“Mas a admiração não faz avaliações. Ela simplesmente observa em seus próprios termos.” E, para a filósofa, esta qualidade é fundamental.
“Parece que, hoje em dia, sempre que fazemos algo, pensamos: ‘Será que é útil?’ ‘Como irá nos ajudar?'”, prossegue ela.
“A nossa mentalidade é esta: tudo precisa ser útil, até os seus hobbies, é preciso maximizar o produto. E isso mata a admiração. Este é o antídoto contra o deslumbramento.”
Maravilhar-se com o mundo é um aspecto fundamental da nossa humanidade. O deslumbramento incentiva novas ideias e invenções que alimentam e enriquecem nossas vidas, individual e coletivamente.
Este é o argumento de Helen de Cruz no seu livro Wonderstruck: How Wonder and Awe Shape the Way we Think (“Maravilhado: como o deslumbramento e o assombro moldam nossa forma de pensar”, em tradução livre).
Assombro e deslumbramento
Entender o assombro e o deslumbramento, segundo Cruz, é apreciar um aspecto importante e imortal do ser humano. E, embora psicologicamente relacionadas, são duas emoções diferentes.
O assombro é o que “sentimos quando percebemos ou conceitualizamos a imensidão”, seja ela física ou conceitual. É o que sentimos quando contemplamos o céu, observamos as pirâmides do Egito ou tomamos conhecimento dos inúmeros infinitos.
Já o deslumbramento “é a emoção despertada quando vislumbramos o desconhecido que está além dos limites da nossa compreensão”.
É algo como o que sentimos ao ver um grão de areia sob a lente do microscópio ou um evento astronômico inesperado.
Essas duas emoções são combinadas pela “necessidade de acomodação cognitiva” — ou seja, o desejo de abrir espaço na nossa mente para acomodar o assombro e o deslumbramento.
“Com assombro e deslumbramento, eu me refiro à ideia de Descartes, de que eles são basicamente a primeira paixão”, explica a filósofa.
“Quando você encontra algo pela primeira vez ou considera algo como se fosse a primeira vez, você tem essa sensação de ‘uau, o que é isso?’ Existe ali alguma coisa para a qual você não estava preparado.”
Cruz destaca que essas duas emoções instigam ativamente dois ramos do conhecimento que, atualmente, acreditamos serem totalmente separados: as ciências humanas e exatas.
“Acredito que, em última instância, elas encontram sua origem no sentido de assombro, já que o mundo à nossa volta nos deixa deslumbrados e tratamos de entendê-lo melhor”, segundo ela.
“Em seguida, tentamos dar um lugar na nossa mente àquilo que nos assombra, o que podemos fazer de muitas maneiras — seja pela arte, poesia ou pesquisa científica, ou por qualquer das muitas outras atividades humanas. Elas são, na verdade, a resposta à nossa tentativa de aprender mais sobre o mundo.”
E isso é algo que fazemos desde sempre. Mas, na sua pesquisa, a filósofa traçou uma linha de assombro ao longo da história, partindo da filosofia ocidental.
Platão e Aristóteles consideravam que o assombro era a origem da Filosofia. Graças a ele e ao deslumbramento, os seres humanos começaram a explorar o seu entorno e se perguntar sobre a origem da vida e das coisas.
“Em Teeteto [o diálogo de Platão sobre a natureza do saber], Sócrates diz que ‘a Filosofia não tem outra origem senão o assombro'”, explica a filósofa.
“Em seguida, Aristóteles afirma que a ciência começa com o assombro de todos os seres humanos. Não se trata apenas das crianças, nem dos filósofos ou cientistas, mas de todos.”
Milagres e maravilhas
Na Idade Média, segundo Cruz, as pessoas se perguntavam o que nos causa assombro. Assim surgiu a distinção entre milagres e maravilhas.
“Os milagres são aquilo que é causado por Deus e está realmente fora do alcance de como a natureza funciona normalmente”, explica ela. “Mas as maravilhas são coisas da natureza que não entendemos, como o magnetismo, descrito por São Tomás de Aquino. As pessoas acreditavam naquela época que fosse um fenômeno raro.”
Esses fenômenos raros interessaram particularmente os pioneiros da ciência moderna. E, no século 16, eles “se concentraram no que era estranho, não no normal”. Aqui se incluem os alquimistas, que foram os precursores da química.
“O estranho ajudou os cientistas a irem mais além para aprender sobre o mundo. E, na verdade, este é um aspecto importante da revolução científica”, prossegue a filósofa.
“Robert Hooke [1635-1703], por exemplo, escreveu um livro mostrando como é estranho aquilo que podemos observar no microscópio. E o que pareceu mais assombroso foi como é bonito aquilo que é natural.”
“Uma pulga, por exemplo, que as pessoas odeiam, aparece bonita no microscópio”, explica Cruz, “enquanto uma lâmina de barbear parece rombuda como um machado que não serviria para cortar uma árvore.”
“Por que a natureza parece tão bonita e os objetos feitos pelo homem, tão imperfeitos?”, questiona a filósofa. “Este era o tipo de pergunta que as pessoas faziam, tentando realmente se aprofundar naquilo que nos assombra. E isso continua até os dias de hoje.”
O surpreendente é que a ciência não elimina o assombro, quando torna seus mistérios inteligíveis.
O arco-íris não deixou de nos deslumbrar quando a Ciência explicou o que ele é. Além disso, “nossa compreensão de como se forma fisicamente o arco-íris abre novos mistérios, como, por exemplo, a estrutura da cor e da própria realidade”, escreve Cruz.
Mas, no mundo de hoje, existem obstáculos que eliminam o assombro das nossas vidas. Alguns deles são resultantes da tecnologia, por mais avanços que ela tenha nos trazido, incluindo novos motivos e oportunidades de assombro e deslumbramento.
Um exemplo é a poluição luminosa, que faz com que grande parte do espetáculo do céu noturno seja invisível para a maioria da população mundial.
Quando você olha para cima, segundo Cruz, sua experiência é muito diferente da que tiveram nossos antepassados. Em uma noite clara, eles viam na vastidão escura “um rico tapete tecido com sutis tons de púrpura, rosa e vermelho-violeta, salpicado por milhares de estrelas de diversos tamanhos.”
Mas, hoje em dia, “o brilho constante da luz artificial significa que muitos de nós nunca vimos a Via Láctea, nossa galáxia”.
Mas o obstáculo mais persistente talvez seja o nosso próprio comportamento. Nosso contínuo esforço em prol da produtividade esgota a capacidade de nos deslumbrarmos.
Por isso, Cruz adverte: “o assombro exige atenção”.
“O que você precisa fazer é basicamente se colocar em um estado que não o leve a se perguntar: ‘isto é útil para mim ou não?’ Você simplesmente se deixa levar e aprecia as coisas pelo que elas são.”
No seu livro, Cruz oferece conselhos para fazer com que o assombro faça parte da nossa vida.
“A questão é: por que somos assim? Por que nos comportamos como se cada segundo precisasse ser produtivo?”, ponderou ela para a BBC News Mundo.
“Fazemos isso porque a sociedade é configurada desta forma. Acredito que precisamos de uma mudança social.”
“Precisamos resistir à ideia de que a economia é tudo o que importa e conseguir nos organizar, não só individualmente, mas também como sociedade, para termos a oportunidade de nos deslumbrarmos”, defende a filósofa.
“Vou contar uma pequena história. Muito tempo atrás, eu morava em uma rua com muito trânsito e, no meio, havia uma pequena faixa que era como um refúgio, com cerejeiras japonesas e um pequeno riacho. Ela foi feita por um arquiteto no século 19 e era realmente muito bonita.”
“Chegou um momento em que as autoridades disseram que aquelas árvores estavam obstruindo o trânsito e seria necessário construir uma terceira pista”, ela conta. “Todos no bairro se opuseram. Eles se acorrentaram às árvores e organizaram eventos, como reuniões para observar flores e procurar ovos de Páscoa.”
“Mas, infelizmente, o canteiro foi destruído. Desde então, ficou para mim a lembrança de como, até entre duas ruas tomadas pelo trânsito, foi possível existir uma fonte de deslumbramento.”
E não é preciso apenas preservar essas fontes de deslumbramento. Toda a sociedade e nós mesmos as precisamos incorporá-las ao nosso cotidiano, para que elas não passem despercebidas.
O livro de Helen de Cruz apresenta sugestões para cultivar o assombro e o deslumbramento. Elas incluem desde assistir a eventos científicos, como as noites de Ciência oferecidas por alguns museus, até “observar eclipses, como ocorreu recentemente, e participar de grupos como os de hanami, a tradição japonesa de se maravilhar com as cerejeiras em flor”.
Outra alternativa é se entregar à ficção, com obras como a série de livros Terramar, da escritora americana Ursula K. Le Guin (1929-2018). Suas obras inspiram assombro, desafiando os leitores a questionar a realidade e a natureza das possibilidades.
Outra opção é a filosofia, que fornece o espaço mental para a reflexão. E contemplar a arte ou se permitir ser invadido pela música, participar de eventos esportivos ou assistir a festivais religiosos.
Se você não tiver tempo, pode simplesmente seguir este antigo conselho: “pare e sinta o aroma das rosas”.
Você pode observar como uma flor se infiltra em uma rachadura do concreto ou, como diz a filósofa, deleitar-se com “os cristais de gelo na sua janela, no inverno”, que nunca perdem seu encanto.
“Sem um pouco de magia nas nossas vidas, sem um lugar para o inesperado e o maravilhoso, a vida é aborrecida e monótona”, escreveu Cruz.
“A realidade é literalmente repleta de maravilhas. Precisamos abrir espaço para elas, para que a vida valha a pena.”