SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao cair da noite, as luminárias se acendem na sede do Grupo Tapa, e os morcegos entram em revoada, se debatendo pelos cômodos do sobradinho alugado pela companhia teatral, na Barra Funda, zona oeste paulistana.

O diretor do Tapa, Eduardo Tolentino, de 70 anos, passa a maior parte do tempo ali, traduzindo obras estrangeiras, entre estantes empoeiradas, com livros e figurinos antigos. Ou, então, supervisiona a sua mais recente montagem, “Tio Vânia”, clássico do russo Anton Tchékhov, agora no Sesc Santana.

“É uma peça que mexe com a disputa pela terra, um tema comum ao Brasil de hoje. Custava o Silvio Santos ter deixado o Zé Celso ficar com aquele terreno? Não existe nada mais brasileiro que a elite russa”, diz Tolentino, mencionando a briga entre o empresário e o dramaturgo pela criação de um parque, no Bexiga. Na produção contemporânea, quem ousa montar obras de séculos passados é impelido a traçar paralelos temáticos com o nosso tempo.

Para o público e a crítica, o maior elogio que pode ser feito a uma obra de arte se resume ao lugar-comum do “mas é tão atual!”, frase repetida à exaustão pelos próprios artistas, como se uma sonata de Mozart significasse, agora, nada.

Tolentino sabe, no entanto, que o texto de Tchékhov se passa mesmo no século 19, numa Rússia czarista, embora a ação dramática só se desenvolva quando as cortinas de veludo se abrem, após o terceiro sinal.

No popular, o choque de temporalidades resulta em um teatrão, à maneira do Tapa. Em cena, o interior da Rússia se desfaz em tecidos, que sugerem um jardim. Em paralelo, os figurinos são de época, indicando a distância, no tempo e no espaço, da história de Vânia, um homem velho, dono de uma propriedade rural, interpretado pelo ator Brian Penido Ross.

Ele constata a irrelevância de sua existência, tanto mais quando Serebriákov, um professor, papel de Zé Carlos Machado, chega para viver em sua fazenda, na companhia de sua mulher, a jovem Helena, personagem de Camila Czerkes. Os novos moradores desestabilizam a rotina da fazenda incomodando Vânia, absorto em suas comparações. Afinal, Serebriákov é um homem arrogante, e Helena seduz todos os homens.

Um deles, é o médico Ástrov, papel de Bruno Barchesi, também disputado por Sônia, interpretada por Ana Cecília Junqueira. Tchékhov é um dos autores preferidos da companhia, sobretudo pelos elencos numerosos. “Não fazemos um teatro de protagonista”, diz o diretor. Do autor russo, o Tapa montou “Ivánov”, em 1998, e “O Jardim das Cerejeiras”, em 2019.

Suas peças se inserem no contexto do teatro realista, com uma postura crítica na representação da sociedade. Desde o século 19, a vida de Tchékhov se misturou à história do teatro. Basta lembrar que “Tio Vânia” estreou, em 1899, no Teatro de Arte de Moscou, com direção de Constantin Stanislavski, criador de um dos métodos de atuação mais difundidos ao redor do mundo.

Já o Grupo Tapa, desde a sua fundação, nos anos 1970, no campus da PUC-Rio, faz um trabalho de base, apostando no chamado teatro de repertório, isto é, encenando obras clássicas de grandes autores. É também um contraste com o cenário atual, em que produções modernosas têm dominado as mostras.

“O que não nos deixa sozinhos é saber que outros profissionais estão buscando outros caminhos. Por que o teatro tem de ser único? É uma tendência horrível no teatro brasileiro”, afirma Tolentino. Nesse sentido, ele comemora a diversidade da cena paulistana, mosaico bem diferente do Rio de Janeiro, de onde o grupo se mudou, em 1986, com as dificuldades de se montar o repertório escolhido.

“Existe uma coisa chamada Projac que criou um fenômeno de peças de celebridades. A primeira coisa que te perguntam lá é qual é o global no elenco. Se você não tiver um global, não consegue divulgar. O Projac é um projeto ideológico”, diz.

O Tapa se mantém, sobretudo, com os recursos da bilheteria. Mas, desde o fim do ano passado, tem sido mais difícil continuar os trabalhos. O Teatro Aliança Francesa fechou, e o grupo perdeu o palco em que encenou as suas obras por 15 anos.

A sorte, afirma Tolentino, foi o Sesc ter prontamente acolhido a companhia. “Qual ofício não é difícil? Se você não for o filhinho de alguém, você precisa resistir. E o teatro resiste”, diz o diretor.

TIO VÂNIA

Quando Quando Qui. a sáb, às 20h; dom. e feriados, às 18h. Até 16 de junho

Onde Sesc Santana

Preço R$ 15 a R$ 50

Classificação Não informada

Elenco Brian Penido Ross, Zé Carlos Machado e Anna Cecília Junqueira

Direção Eduardo Tolentino