SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A alagoana Vera Acássia de Faria Barros, 39, nasceu com fissura labiopalatina. Natural de Arapiraca, iniciou tratamento em Maceió. Após um erro médico na primeira cirurgia, não conseguiu continuar com os cuidados. “No Norte e no Nordeste, o atendimento é precário e não tem o entendimento e a evolução daqui”, lamenta.
Vera se mudou para São Paulo aos 17 anos e, após completar 18, ocupou uma vaga no Hospital das Clínicas. Quando nasceu seu filho Miguel de Faria Lima, 10, descobriu que o menino tinha a mesma condição. Ele é paciente do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus –sob gestão do Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês–, na Bela Vista, região central de São Paulo.
Vera interrompeu seu tratamento para priorizar o do filho. A mãe de Miguel não está sozinha na dificuldade para tratar a fissura. O país possui 33 Centros de Tratamento de Malformação Labiopalatal habilitados pelo Ministério da Saúde. A maior parte fica no Sudeste.
O Hospital Municipal Infantil Menino Jesus não está na lista dos centros, mas é referência para o município de São Paulo. Todo bebê que nasce com fissura labiopalatina em maternidade do SUS (Sistema Único de Saúde) da capital paulista é encaminhado para lá. O local possui uma linha de cuidados própria. As UBSs (Unidades Básicas de Saúde) também referenciam crianças e adolescentes para o serviço.
Quem precisa do tratamento deve se informar na UBS mais perto de onde mora. A regra vale para todo o país.
O paciente Miguel, 10, e a ortodontista Érika Tiemi Kurinori – Karime Xavier/Folhapress
Jamile Brasil, coordenadora médica da linha de cuidados da fissura labiopalatina do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, afirma que o paciente passa por cirurgião plástico, pediatria, ortodontista, odontopediatra, psicólogo, fonoaudiólogo, otorrino — sempre que necessário, há consultas com neurologista, pneumologista e nutricionista. No local, o atendimento vai até 18 anos.
De acordo com a ortodontista Érika Tiemi Kurimori, Miguel já fechou o lábio e o palato, e iniciará o preparo para a cirurgia de enxerto ósseo. O procedimento permitirá a movimentação dentária na região da fissura e vai restaurar a estética na região.
No hospital, a reportagem também encontrou Arthur Henrique Santos Calvo, 2. A mãe, Jéssica Santos de Siqueira, 33, descobriu no dia do parto que Arthur tinha fissura labial.
Arthur veio ao mundo no Hospital Municipal Prof. Dr. Waldomiro de Paula, em Itaquera, na zona leste. Com um mês de vida, foi encaminhado ao Hospital Menino Jesus, acolhido e atendido pela equipe multidisciplinar.
A informação e o apoio psicológico ajudaram Jéssica a combater o medo da não aceitação. “Essa criança vai ter um futuro? Perguntei ao médico. Era a minha preocupação na época. Hoje, estou aliviada. Aqui eles falam que vai dar tudo certo e ele ficará perfeito”, relata.
“Em casa não tinha fotos expostas dele. Por medo, insegurança de ele olhar e falar ‘nossa que coisa feia! Quem é isso?’. E até explicar que ele nasceu assim e que não é do jeito que ele está pensando, me incomodava, me deixava mal”, conta a mãe.
“Depois que eu comecei a passar com o Vinicius [psicólogo], coloquei a primeira foto dele. Já me arrependi por não ter colocado antes, porque ele olhou a foto e ficou encantado. Lembro até hoje da cena, de ele olhar para o porta-retrato e falar ‘que lindo!’. Nunca mais tirei o porta-retrato dali”, conta.
Para o psicólogo do Hospital Menino Jesus, Vinicius de Moura Barbati, o trabalho da aceitação começa com os pais e responsáveis. No momento em que a criança entende e é capaz de fazer uma leitura, entram em cena os bonecos terapêuticos, todos fissurados, disponíveis no hospital.
“As mães, quando estão gestando o bebê, ficam imaginando como eles vão ser quando nascerem. E essa imaginação é composta por um bebê ideal. A descoberta do diagnóstico gera um impacto. Nosso trabalho é lidar com a mãe nessa aceitação e fazer, de certa maneira, um luto desse filho imaginário para se adaptar e aderir ao tratamento”, explica Barbati.
“Com os bonecos fissuradinhos a criança pode, a partir da brincadeira, da ludicidade, perceber que aquilo não é um defeito, mas uma característica provisória. Quando há cirurgia, usamos o bonequinho para simular –a criança assume o lugar do médico. Na brincadeira, ela tentar entrar em contato com alguma angústia e pode espelhar suas questões”, afirma o psicólogo.
Segundo a literatura médica, no Brasil, um a cada 650 bebês nasce com fissura labiopalatina — malformação congênita que envolve lábio, gengiva e o palato (céu da boca), mas não necessariamente juntos. A condição, que está relacionada a uma combinação de fatores genéticos e ambientais, traz desafios como dificuldade para se alimentar, para falar e para respirar, além de rejeição de familiares e problemas de relacionamento.
Cristiano Tonello, cirurgião craniofacial, chefe do Departamento Hospitalar do HRAC (Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais) da USP (Universidade de São Paulo) e professor do curso de medicina da USP de Bauru, explica que o diagnóstico da fissura deve ser feito no pré-natal, para que a família seja preparada e orientada. A partir da 12ª semana, com um ultrassom morfológico, já é possível saber se o bebê nascerá com a condição.
No HRAC, que é um dos serviços habilitados pelo Ministério da Saúde, a criança também é acompanhada por uma equipe multidisciplinar.
“A partir dos três meses, a criança faz a primeira cirurgia, que é a correção e fechamento do lábio. Com um ano, realizamos o fechamento do céu da boca. E depois ela entrará num longo acompanhamento com fonoaudiólogo”, explica Tonello.
“Por volta dos 8 aos 10 anos, é feito o enxerto ósseo alveolar. Mais futuramente, já na adolescência, aos 16, 17 ou 18 anos, é feita a cirurgia de avanço da maxila. A rinoplastia é o último procedimento”, diz o cirurgião.
Entidades entregam proposta de linha de cuidados ao Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde não possui uma linha de cuidados padronizada para a fissura labiopalatina. Há protocolos clínicos e indicações terapêuticas que orientam o atendimento multidisciplinar do paciente e da família.
O Instituto Coalizão pela Saúde, a Operação Sorriso e a Johnson & Johnson MedTech enviaram ao órgão uma proposta. O documento está em avaliação pela equipe técnica.
“Por melhor que sejamos [as organizações sem fins lucrativos que atuam na área], nunca teremos o alcance de um sistema público. Esses centros que já existem têm capacidade de atendimento, mas não um atendimento muito bom e não chega ao alcance necessário”, comenta Cristina Murachco, diretora executiva da Operação Sorriso Brasil, ONG que oferece cirurgia e tratamentos gratuitos a pessoas com fissuras.
“O Ministério tem um papel importante nisso, mas trata-se também de dar visibilidade à questão, para trazer esse paciente para a luz. Muitas vezes, essas pessoas ficam escondidas dentro das suas casas. Nós as encontramos quando abrimos, por exemplo, uma chamada para um programa cirúrgico. As filas manifestam com bastante clareza a necessidade que a sociedade ainda tem de atender esse paciente”, diz Murachco.