UIRÁ MACHADO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O americano Peter Hotez leva uma vida dupla há alguns anos. Em uma delas, é o médico e cientista que sempre quis ser, responsável pelo desenvolvimento de vacinas para o mundo inteiro. Na outra, é um soldado na luta contra grupos antivacina e anticiência, uma função que jamais pensou em exercer.
“O ativismo antivacina não é mais um fenômeno apenas teórico ou relacionado às redes sociais. É uma força assassina”, diz Hotez, codiretor do Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital para Crianças do Texas e responsável pela produção de uma vacina de baixo custo contra a Covid.
Hotez defende que o Brasil invista na criação de uma indústria farmacêutica própria, para não ficar tão dependente de multinacionais na próxima pandemia -que, na visão dele, deve ocorrer nesta década. Ele também diz ser necessário insistir nos reforços vacinais contra a Covid, sem baixar a guarda diante das variantes do coronavírus.
No dia 23 de junho, Hotez estará no Brasil para uma palestra na USP e outra no 1º Congresso Anual Unidos pela Saúde, que será realizado de 22 a 24, em São Paulo.
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*Folha -* Após mais de três anos de pandemia da Covid-19, quais são os principais desafios em relação ao coronavírus?
*Peter Hotez -* Nas próximas semanas, temos a variante XBB do coronovírus. Ainda há transmissão ocorrendo. Por isso, tenho incentivado as pessoas a, se tiverem disponibilidade, obter reforços vacinais específicos para a variante ômicron.
Mais adiante, alguns modelos sugerem alguma sazonalidade para a Covid, de modo que, a cada inverno, poderemos ter aumento de casos. É diferente no hemisfério Sul, mas, no hemisfério Norte, assim como tomamos a vacina contra a gripe a cada outono, devemos tomar a imunização contra a Covid.
Para o longo prazo, lembro que a Covid é o terceiro coronavírus importante do século 21. Tivemos a síndrome respiratória aguda grave (Sars) em 2002 e a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers) em 2012. Acredito que, a cada seis ou sete anos, veremos um coronavírus epidêmico ou pandêmico.
*Folha -* Quanto ainda devemos nos preocupar com variantes do coronavírus?
*Peter Hotez -* É difícil prever, mas não devemos ser complacentes em relação à próxima variante XBB. Ainda é possível que a gente veja um coronavírus muito grave, e por isso é importante continuar com os reforços vacinais.
*Folha -* As vacinas contra a Covid-19 precisam ser aprimoradas?
*Peter Hotez -* Em geral, as vacinas contra a Covid-19 têm feito um bom trabalho ao reduzir internações e mortes. A decepção com as vacinas de RNA mensageiro [mRNA] é que sua durabilidade não é muito longa [exemplos são as vacinas da Pfizer/BioNTech, da Moderna e da CanSinoBio].
Por isso nós desenvolvemos uma alternativa [no Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital para Crianças do Texas, da Faculdade Baylor de Medicina]. Utilizamos uma tecnologia mais antiga, de proteína recombinante, a mesma usada para produzir vacina contra hepatite B no Brasil.
Essa vacina que desenvolvemos já teve 100 milhões de doses administradas na Índia e na Indonésia. Essa pode ser uma boa maneira de avançar com os reforços vacinais, em vez de depender do mRNA a cada poucos meses. E o Brasil tem capacidade de produzi-la localmente.
*Folha -* Avanços na qualidade das vacinas são caros?
*Peter Hotez -* Não acho que o dinheiro seja o maior problema. Nós fizemos uma vacina que considero tão boa quanto as da Pfizer e da Moderna e conseguimos produzi-la por dois a três dólares por dose.
Claro que é preciso investir em pesquisa e desenvolvimento, mas não existe uma relação proporcional entre recursos gastos e qualidade da vacina. É possível produzir vacinas de boa qualidade a baixo custo.
*Folha -* Ainda assim, houve grande desigualdade no acesso à vacina durante a pandemia. O que pode ser feito para superar esse problema?
*Peter Hotez -* Uma questão é a desigualdade na distribuição das vacinas. E, para enfrentar isso, acho muito importante não depender exclusivamente das empresas farmacêuticas multinacionais.
Não que as farmacêuticas sejam vilãs. Mas frequentemente se diz que apenas as grandes multinacionais têm capacidade de fabricar vacinas para o mundo todo e que por isso dependemos delas.
Eu discordo. Deveríamos ter mais vacinas produzidas localmente. Olhando para o futuro, considerando que é provável que enfrentemos outro grande coronavírus, é importante desenvolver um ecossistema de produção local de vacinas no Brasil. Não só para o próprio Brasil mas também para seus vizinhos.
É um ecossistema que envolve diversos componentes. Significa mais apoio ao Butantan, ao Bio-Manguinhos e à iniciativa privada. Mas também mais apoio às universidades. É muito importante capacitar as pessoas para a fabricação de vacinas.
*Folha -* Durante a pandemia, qual foi o maior erro, a maior conquista e a maior lição?
*Peter Hotez -* A tecnologia de mRNA acabou se saindo melhor do que muitos de nós esperávamos, mas foi um erro depender demais dela e não explorar alternativas.
E uma grande decepção foi o aumento do ativismo antivacina. Eu vou lançar em breve um novo livro que se chama “The Deadly Rise of Anti-Science” [a ascensão mortal da anticiência]. Espero poder traduzi-lo para o português, porque isso também foi um problema no Brasil quando o então presidente [Jair] Bolsonaro se recusava publicamente a tomar vacina.
Combater o ativismo antivacina será outro aspecto muito importante daqui em diante. Isso já é uma grande parte do que eu faço. Tenho uma vida dupla. Eu fabrico vacinas para o mundo -e esse sempre foi o plano. Mas tem a parte inesperada de enfrentar o ativismo antivacina. Nunca pensei que precisaria fazer isso. O ativismo antivacina não é mais um fenômeno apenas teórico ou relacionado às r