SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ela liga a câmera do celular e começa a gravar. Tem a pele clara, os olhos azuis e os cabelos lisos e loiros, na altura do ombro. De batom vermelho e blusa branca, está na cozinha de casa. Coloca um avental laranja e traz para perto da câmera um prato com um bolo. Ela corta um pedaço e come.
Hana Schüroff é uma influenciadora, mas não do tipo a que a internet está acostumada. No canto do vídeo, publicado no TikTok, a moça adicionou uma gravação de Olavo de Carvalho, guru da direita brasileira que morreu em 2022. Ele diz que as mulheres perderam o direito de serem sustentadas pelo marido: “Perdeu um direito e acredita que ganhou. Ganhou o direito de ser empregada. Só um idiota acha que isso é vantagem”.
A influenciadora Hana Schüroff produz conteúdos que misturam a rotina de dona de casa com mensagens antifeministas – Reprodução/TikTok
A jovem acena positivamente com a cabeça às afirmações de Olavo. Duas frases atravessam o vídeo: “Olavo sempre teve razão! Eu sigo preferindo ser dona de casa”.
A conta da moça mistura conteúdos que mostram a rotina de uma dona de casa –assando um bolo de chocolate para o marido, por exemplo– com mensagens de caráter ideológico, nas quais critica o feminismo e lista características de uma “mulher de valor” (na sua concepção, aquela que é feminina, não é vulgar e que prioriza Deus e a família).
Ela é uma “tradwife” –nome em inglês que pode ser traduzido como “esposa tradicional”. Especialmente nos Estados Unidos, as “tradwives” formam uma comunidade ativa de mulheres que têm uma visão conservadora sobre gênero e casamento. Elas defendem que as mulheres priorizem os cuidados com o lar, o marido e os filhos, e afirmam que perderam direitos com o feminismo.
Há uma certa nostalgia com um passado distante, que não viveram, em que imaginam que as mulheres eram protegidas pelos maridos, não precisavam trabalhar e tinham tempo para se dedicar à família e mantê-la unida. Isso se reflete até na estética adotada pelas “tradwives” nas redes: elas quase sempre vestem roupas conservadoras e femininas, remetendo à imagem de uma dona de casa do século passado.
No Brasil, a moda ainda não pegou com força, mas há alguns perfis semelhantes, especialmente no TikTok. A maioria das referências gira em torno do conceito da mulher de valor, ou valorosa, que se opõe às feministas. Essas influenciadoras costumam repetir que é uma escolha delas ser dona de casa e priorizar a família.
“Tem coisas híbridas muito curiosas. Mulheres que se afirmam conservadoras, mas que ao mesmo tempo se dizem empoderadas”, afirma a pesquisadora Camila Rocha, coautora do livro “Feminismo em Disputa” e colunista da Folha. “Há alguns anos fizeram um congresso de mulheres empoderadas em Deus. ‘Sou empoderada e estou defendendo a subordinação da mulher no casamento.'”
Ela lembra que nas últimas décadas houve um aprofundamento da crise do cuidado, ou seja, a sobrecarga das mulheres –especialmente as não-brancas e economicamente vulneráveis– que ficam responsáveis pelo cuidado da família, além de terem que lidar com as demandas do trabalho. Por isso, o casamento representaria uma possibilidade de dividir essas responsabilidades, ainda que na teoria.
“Para essas mulheres, casar é um recurso muito valioso. ‘Vou entrar para uma igreja evangélica’, ‘vou me tornar uma mulher de valor’, tudo isso tem uma questão moral de como a sociedade trata pior as mulheres solteiras, mas tem também um componente econômico”, diz Camila. “E aí tem todas essas influenciadoras conservadoras que estão suprindo esta demanda.”
Ainda que sejam poucas as influenciadoras do tipo no país, líderes da direita bolsonarista já acenaram para termos do movimento –seja por alinhamento ideológico ou por entenderem que essa é uma forma de se aproximar do voto feminino.
Um exemplo é o deputado federal Nikolas Ferreira (PL), que no ano passado, no Dia da Mulher, colocou uma peruca loira e fez um discurso transfóbico no plenário -tratando mulheres trans como “homens que se sentem mulheres”.
Ao final, o parlamentar afirmou: “Mulheres, retomem a sua feminilidade, tenham filhos, amem a maternidade, formem a sua família, porque dessa forma vocês colocarão luz no mundo e serão, com certeza, mulheres valorosas”.
De peruca, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) faz discurso transfóbico no plenário da Câmara – Reprodução/TV Câmara
A visão de mundo defendida pelas “tradwives” é compartilhada pelos bolsonaristas mais extremistas e pela extrema direita norte-americana. Nos Estados Unidos, algumas delas começaram a adotar um discurso mais agressivo e evidentemente alinhado a franjas da direita no país.
Pesquisadora na universidade Tilburg (Holanda), a norte-americana Eviane Leidig publicou em setembro do ano passado um livro sobre as influenciadoras da extrema direita (“The Women of the Far Right: Social Media Influencers and Online Radicalization”, ou, na tradução livre, “As Mulheres da Extrema Direita: Influenciadoras e Radicalização Online”).
Durante a pandemia da Covid-19, ela acompanhou os conteúdos postados por essas mulheres. Leidig reparou que elas alternavam publicações rotineiras com mensagens de cunho ideológico –assim como faz a jovem seguidora de Olavo de Carvalho, ainda que o seu conteúdo seja conservador, mas não extremista.
“Em um dia elas faziam um post cuidando do jardim com os filhos. No dia seguinte, postavam coisas tipo “Vidas Brancas Importam” [slogan supremacista branco que surgiu em resposta ao movimento racial “Vidas Negras Importam”], ou espalhavam teorias conspiratórias sobre a vacinação contra a Covid-19 ou sobre “A Grande Substituição” [conspiração que fala em um plano para substituir a população branca por imigrantes não-brancos]”, diz Leidig à Folha.
A pesquisadora avalia que, compartilhando a rotina, essas mulheres conseguiam cultivar uma percepção de autenticidade, fazendo com que as pessoas se identificassem com elas. Além disso, elas costumavam produzir conteúdos em torno de temas que movimentam uma grande comunidade online, como comida ou maternidade. Publicar esse tipo de material também ajudava a disfarçar o verdadeiro intuito da conta.
A organizadora do 1º Congresso Antifeminista no Rio de Janeiro, Sara Winter, ex-Femen e hoje autointulada antifeminista. Folhapress/Raquel Cunha
Essas influenciadoras começaram a ficar mais ativas nas redes sociais por volta de 2015, pouco antes de Donald Trump ter sido eleito presidente, e passaram a postar menos depois da derrota do Republicano em 2020.
“Eu argumento que essas mulheres têm uma função chave em normalizar e legitimar ideias de extrema direita”, diz Leidig. “E eu discuto como elas fizeram isso, disseminando mensagens de ódio de um jeito muito sutil.”
A preferência dessas influenciadoras por abordar questões de gênero e criticar o feminismo se dá por dois motivos principais, acredita a pesquisadora. Primeiro, elas têm mais credibilidade e legitimidade para discutir o assunto do que os homens. Segundo, pode ser uma forma de atingir uma audiência que não seria tão vulnerável a outros temas caros para a extrema-direita norte-americana, como a supremacia branca e o antissemitismo.
“Eu acho que falar sobre o antifeminismo, em vez de falar coisas racistas de cara, é uma posição mais estratégica para atingir audiências maiores. É preciso primeiro construir um componente de confiança e identificação com seus seguidores, para depois transitar para um discurso mais extremo.”
Mesa do coffee break do 1º Congresso Antifeminista do Brasil. Folhapress/Raquel Cunha