GUILHERME BOTACINI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O governo Lula (PT) anunciou nesta quarta-feira (10) que apoiará a denúncia da África do Sul à Corte Internacional de Justiça da ONU para apurar a acusação de que Israel comete genocídio contra o povo palestino em Gaza.

A ação do país africano foi apresentada ao tribunal, mais conhecido como Corte de Haia, no último dia 29. O documento acusa o Estado judeu de descumprir a Convenção Internacional contra o Genocídio, segundo o qual o termo pode ser definido a partir de cinco diferentes práticas: matar membros de um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso; causar danos físicos ou mentais graves a eles; infligir a essas pessoas condições de vida que destruam sua capacidade de sobrevivência; impedir sua proliferação; transferir crianças desse grupo para outro local de forma forçada.

O apoio do Brasil foi divulgado horas depois de o presidente Lula ter se reunido com o embaixador palestino no Brasil, Ibrahim Alzeben. “À luz das flagrantes violações ao direito internacional humanitário, o presidente manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para que determine que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados”, diz a nota do governo brasileiro.

A declaração destoa da tradição diplomática brasileira de buscar equilíbrio entre partes em conflito e, assim, legitimidade para atuar como interlocutor —papel que Lula tentou assumir durante o primeiro ano de seu terceiro mandato tanto no Oriente Médio, como na Guerra da Ucrânia.

Mais do que isso, para Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, o anúncio evidencia uma concertação maior do país com o Brics, grupo formado por nações emergentes, e um distanciamento de Estados ocidentais.

Ele acrescenta que a declaração do governo federal não chega a ser uma ruptura com esses países, mas pode significar o início de uma mudança de eixo. “O Brasil olhava muito mais para o Ocidente e, com países emergentes, posava para fotos. Hoje vejo laços políticos cada vez mais profundos com atores como China e Rússia”, diz.

O anúncio pode simbolizar ainda o princípio de um distanciamento maior dos EUA, ator principal das Américas —e, portanto, dos valores que eles professam. “É um perigo porque os países com os quais o Brasil hoje tem convivido mais de perto não são países que prezam, por exemplo, a democracia liberal”, afirma o pesquisador.

A Conib (Confederação Israelita do Brasil) condenou a posição brasileira. Em nota, disse que o governo diverge da posição de equilíbrio e moderação da política externa do país. “A ação sul-africana é uma inversão da realidade”, afirma a entidade.

A organização argumenta que Tel Aviv apenas respondeu ao ataque que o grupo terrorista Hamas perpetrou no sul israelense em 7 de outubro, matando ao menos 1.200 pessoas. “Israel está apenas se defendendo de um inimigo, ele sim, genocida, que manifesta abertamente seu desejo genocida de exterminar Israel e os judeus.”

Outros países além do Brasil já manifestaram publicamente apoio à denúncia sul-africana, como Turquia, Jordânia, Malásia, Bolívia e Venezuela. O governo de Gabriel Boric no Chile, por sua vez, disse nesta quarta-feira que em breve também apresentará uma denúncia contra Israel em fóruns internacionais.

Sylvia Steiner celebrou a posição brasileira. “O apoio de países como Brasil e Chile, latino-americanos bastante respeitados, tem peso”, diz. Ela atuou entre 2003 e 2016 no TPI, o Tribunal Penal Internacional —órgão que também está baseado na cidade holandesa e, diferentemente da Corte de Haia, julga indivíduos, não Estados.

Condenar Estados por genocídio não é uma tarefa simples ou célere. Um dos casos mais conhecidos é o da Sérvia, acusada de ter ordenado o massacre de bósnios em 1995. Em 2007, a Corte de Justiça reconheceu que o massacre de 8.000 pessoas em 1995 foi genocídio. Mas eximiu o Estado sérvio da acusação de ter ordenado o crime.

A equipe jurídica de Israel em Haia será liderada por Malcolm Shaw, especialista britânico escolhido por sua experiência em litígios na corte, e a sul-africana, por John Dugard, ex-relator especial da ONU sobre os territórios palestinos ocupados.

“Todas as páginas do processo apresentado pela África do Sul contém denúncias muito bem fundamentadas, muitas fontes de prova sobre genocídio”, prossegue a jurista. O documento pede que a corte emita medidas provisórias ou de curto prazo que interrompam a ação de Israel em Gaza. Na ocasião da apresentação do documento, a chancelaria de Israel afirmou que o processo não tem base para a acusação.

Steiner detalha dois pontos de relevância do caso. Primeiro, afirma que investigar a responsabilidade penal de um indivíduo (como faz o TPI) é muito mais difícil do que investigar a responsabilidade de um Estado como um todo (caso da Corte de Justiça). Segundo, diz que é provável que, agora, a corte emita medidas provisionais para exigir “a expressa cessação imediata das hostilidades”

As decisões da alta corte —principal órgão judicial da ONU e composto por 15 juízes, cada um de um país— são vinculativas, embora haja poucos meios de fazê-las cumprir, mesmo que Israel seja signatário da Convenção Internacional contra o Genocídio de 1948.

Em 2004, por exemplo, a corte disse que a construção de uma barreira de segurança por Tel Aviv na Cisjordânia ocupada era ilegal e deveria ser desmantelada. Duas décadas depois, os muros seguem de pé.