ROBERTO DE OLIVEIRA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar. A virada de 1999 para 2000 veio cercada de premonições, da ameaça de piração dos computadores por causa do bug do milênio à extinção da vida planetária. Para a despedida, um grupo de cinco amigos pensou em contemplar o mar pela última vez. Só que a grana estava curta, e os preços, nas alturas. Decidiram, então, improvisar o adeus na casa de um deles. Como símbolo de sobrevivência, elegeram o corpo de 80 kg distribuídos em 1,70 m de Valder Bastos, “sempre pintosa”, nas palavras dele, para ser a drag queen Tchaka, a rainha das festas.
Quatro horas de “montação” com peruca, sapato de 30 cm de salto e até maquiagem à base de pasta de dente. Naquele delírio coletivo, Bastos já não era Valder nem Valder era mais Bastos, mas, sim, surgia Tchaka. O nome veio dos comentários dos próprios amigos, em cuja opinião sincera a drag estava a cara do personagem da série norte-americana “O Elo Perdido”, dos anos 1970.
Tchaka fez da alcunha a sua salvação. “Apelido que a gente não quer é o que gruda. O mundo não acabou, e fui procurar o pote de ouro do arco-íris”, conta. E não é que encontrou? Além de ser a drag queen oficial que abre e celebra a Parada LGBT+, neste domingo (11), ela dá cursos de tolerância e respeito em empresas e anima festas no hotel Rosewood São Paulo.
A transformação profissional começou nos idos dos anos 2000, momento em que Tchaka trabalhava na distribuição de panfletos para promover shows de drags e go-go boys, na extinta casa noturna Nostro Mondo, um dos símbolos do underground gay paulistano.
“Durante o trabalho, me convidaram para participar de uma agência de eventos”, lembra. “Fiz uma primeira apresentação em uma festa, e o dono da agência comentou: ‘Vou te moldar para te fazer uma estrela’.”
Tchaka já se apresentava em “shows das caricatas” em outras boates gays. Naqueles tempos, contudo, ainda não havia construído o visual moderno e criativo dos dias atuais. “Tinha aquela coisa, né? Camisetinha amarrada, dois limõezinhos e um batom. Fazia sombra, blush, boca, quebrava o nariz e, se sobrasse um cotoquinho, tirava a papada com o mesmo batom.”
Agora, Tchaka muda sempre o look. Jamais sem abrir mão de referências estéticas e comportamentais, que passeiam entre ícones da cultura “queer”, como a “mãe das drags”, RuPaul, as travestis do filme “Priscilla, a Rainha do Deserto”, de 1994, e Dzi Croquettes, grupo que fez história ao subir ao palco com homens vestidos de mulher para cantar, dançar e lutar pela liberdade no período da ditadura militar, nos anos 1970.
No luxuoso lobby do Rosewood São Paulo, Tchaka conduz seus convidados à festa quinzenal “speakeasy” Casa da Vovó, que acontece no rooftop do hotel. Dispensa o mesmo tratamento gentil e caloroso tanto a “celebrities”, que por ali circulam, quanto aos funcionários, das camareiras aos seguranças. “É um público bastante diverso, a gente recebe de gringo a tiazinha do bem.”
Formada em ciências contábeis, direito e artes cênicas, a drag-atriz, hoje com 53 anos, nasceu em Ilha Solteira (SP). É a caçula de cinco irmãos, sendo que o mais velho é pastor evangélico. Quando criança, por volta dos sete anos, desenhava estrelas, coroas, princesas e unicórnios no solado de um par de tênis Conga.
“Não podia levantar e mostrar minhas criações para as pessoas. Deixava escondido, só para mim”, conta. Até o instante em que coleguinhas impiedosos viraram os calçados na aula de educação física e descobriram os traços lúdicos do pequeno Valder.
A partir dali, virou alvo de bullying da molecada. “Apanhei por ser uma criança viada, afeminadíssima”, ressente-se. “Ainda bem que a minha mãe era protetora, apesar de meu pai ter sido sempre machista e homofóbico.”
Anos depois, no começo da adolescência, o garoto fez duas descobertas que mudariam os rumos de sua vida. Primeiro, veio à tona a atração por homens, despertada quando presenciou um rapaz de sunga a desfilar pela praia. Depois, quando ouviu Ney Matogrosso cantando e rebolando. “Fiquei em choque, paralisado”, diz. “Na verdade, eu me salvei no abraço com Ney.”
Casada há 25 anos com um professor de filosofia da rede estadual de ensino, ex-seminarista, Tchaka diz que sempre teve o incentivo do companheiro.
Neste domingo, será a décima vez que a drag sobe no caminhão para apresentar e conduzir a Parada LGBT+ de São Paulo, uma das maiores do mundo, frequentada por ela há 20 anos. “Foi quando enxerguei a possibilidade de haver um mundo melhor, por meio de um chacoalhão na sociedade. ‘Somos um grupo’, pensei.”
Havia um engajamento muito forte -ela explica- sobretudo entre as lésbicas. “Muitas delas socorreram vítimas de Aids nos anos 1980. Foram elas que me conscientizaram sobre a importância da parada. Desde aquela primeira até os dias de hoje, na terapia, o que eu quero é ser amada. Deitar a cabeça no travesseiro e dizer que valeu ter vivido e ser o que sou.”
Neste ano, a 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo tem como tema “Políticas Sociais para LGBT+ Queremos por inteiro e não pela metade”.
Pesquisa do Orgulho realizada no ano passado pelo Datafolha, em parceria com a Havaianas e a organização internacional AlI Out, revela que pelo menos 37% da população LGBT+ tem dificuldade de acesso à educação, enquanto quase 40% enfrentam diariamente o preconceito em serviços de saúde.
Para recuperar o fio da história, vale lembrar que ativistas LGBTQIA+, numa época em que a sigla nem agregava tantas letrinhas, organizaram a primeira grande parada do orgulho, ainda chamada de marcha para a libertação gay, em 1970, em Nova York.
A marcha ocorreu um ano após a famosa Revolta de Stonewall, quando, em 28 de junho de 1969, houve uma rebelião contra uma operação policial violenta em um bar frequentado por um grupo de gays, lésbicas e trans, sob a alegação de “conduta imoral”. Não à toa, a data foi transformada internacionalmente no Dia do Orgulho LGBTQIA+.
Para Fábio Ortolano, docente da área de desenvolvimento social do Senac SP, estudioso do tema, uma das principais contribuições das paradas é a visibilidade massiva. “É o que permite ir além das palavras de ordem, pois viabilizam novos sentidos e significados coletivos, possibilitam, no espaço público, a manifestação de sexualidades e de gêneros plurais perseguidos e vigiados.”
Muitas vezes, continua o pesquisador, tentam descredibilizar as marchas como se fossem um “Carnaval fora de época”. “Contudo, assim como no Carnaval, a subversão da violência e da opressão se dão pelo exercício da liberdade, do lazer e da ocupação desses espaços públicos. E isso não faz das paradas manifestações menos políticas.”
Tchaka concorda: “Estou ali representando todas as letrinhas, assim como a luta contra a elegebetefobia”. A parada também é importante, explica, pela sensação de pertencimento, “de estar ao lado de meus pares”.
“Nós temos as cores, os corpos, os gritos de guerra, os cartazes. Temos a representatividade de todas as formas possíveis. Então, a parada, por si só, é política.”
“Sobretudo”, ressalta, “neste cenário global de ascensão ultraconservadora da extrema direita.” Momento que pode soar, não custa lembrar, ainda mais apocalíptico do que aquele anunciado fim do mundo que ainda não aconteceu.
27ª Parada do Orgulho LGBT + de São Paulo
Políticas Sociais para LGBT + Queremos por inteiro e não pela metade
Domingo (11), a partir das 10h, na avenida Paulista
Onde saber mais: paradasp.org.br