Roberto de Oliveira
ALTA FLORESTA (MT)
O ponto de observação da torre fica acima da copa das árvores. Num raio de 180 graus, por onde os olhos correm, o que se avista é a diversidade da floresta amazônica. O verde da paisagem nos embevece. Por alguns instantes, temos a impressão de que a mata não tem fim.
A depender do horário, bandos de araras-vermelhas nos passam sobre a cabeça. Apurando o olhar, vemos seus “primos”, os canindés, que logo se aproximam. Nos galhos vizinhos, um casal de araçaris, com seus bicos multicoloridos, parece brincar. Vai dar namoro.
Súbito, uma voz potente ecoa. É o cri-crió, um passarinho pequenino, de coloração discreta, cujo canto atravessa o infinito da mata verde.
Dois mirantes, um próximo à sede do hotel de selva Cristalino Lodge, outro do lado de lá do rio de mesmo nome, são usados como observatório de aves e de macacos que vivem na parte alta da mata. São torres de aço de 50 m de altura, acessíveis por 250 degraus. Descer não é menos cansativo que subir, mas a recompensa vale a empreitada.
O Cristalino Lodge ocupa um território de floresta no sul da Amazônia quase 70 vezes maior que o parque Ibirapuera. Chegar até lá exige voar de Cuiabá até Alta Floresta. Da cidade, basta seguir de carro, tendo a paisagem, por enquanto, tomada por plantações de soja, num trajeto de pouco mais de 20 km até as margens do rio Teles Pires, importante fluxo de água da bacia amazônica e um dos afluentes do Tapajós.
A partir daí, o trajeto segue pelo rio Cristalino, já dentro da RPPN (Reserva Particular de Patrimônio Natural) de mesmo nome, onde fica instalado o lodge com seu catálogo de experiências voltadas para a contemplação e a imersão na natureza.
Além de aves e primatas, é lá de cima que também é possível apreciar, nas manhãs fresquinhas da floresta, um fenômeno chamado de Rios Voadores, formado por massas de ar carregadas de vapor de água. Para assistir ao espetáculo do vaivém de nuvens, é preciso pular da cama antes das 5h.
Em terra firme, a reserva Cristalino é riscada por 30 km de trilhas, todas elas largas, de fácil a moderada locomoção, mas que exigem atenção do visitante. Todos os passeios são realizados com barqueiros e guias experientes, que conhecem os trajetos no mato e os cursos de água.
Existem duas estações já não tão bem definidas em tempos de crise climática: a seca, de junho a novembro, e a cheia, de dezembro a maio, quando costuma chover mais forte e rápido. Em ambas, porém, faz calor, com leve frescor ao anoitecer.
Passa do meio-dia de um sábado quente e úmido, quando o grupo de turistas que acabou de visitar a torre de observações caminha pela trilha. O canto dos passarinhos é interrompido por uma movimentação brusca na mata. Ao menos 30 macacos das espécies macaco-prego e cuxiú estão em festa, celebrando o almoço entre figueiras, palmeiras e castanheiras. A barulheira é intensa. Na quebra dos galhos, folhas caem do alto.
Dá para ver que mamãe prego carrega um filhotinho. Um cordão de tocandiras, formigas que podem medir até 3,5 cm, cruza o trajeto. Como explica o guia Bruno Castelo, 35, que é biólogo, elas são carnívoras e usadas em rituais indígenas de passagem.
No sul da Amazônia, na área da reserva, pesquisadores do mundo todo não se cansam de encontrar novas espécies de insetos, répteis, aves e mamíferos. Graças à proximidade com o Pantanal e também com o bioma do cerrado, a região recebe migração de diferentes animais.
Diante dessa explosão de vida, nós nos deparamos com uma castanheira de 58 m de altura. De idade estimada entre 800 e 1.200 anos, ainda produz castanhas. Para abraçá-la, tal o diâmetro do seu tronco, são necessários seis adultos. Qualquer uma das árvores do Cristalino, se vier a cair, por lá ficará. Toda a reserva é formada por mata primária.
O lodge, por sua vez, com suas 18 acomodações, é totalmente sustentável, do banheiro à compostagem do lixo. A gente vai dormir e acorda conectado à musicalidade da floresta (ah, e tem wi-fi nas áreas sociais). Uma diária nesse pedaço de paraíso custa a partir de R$ 1.950, por pessoa, com todas as refeições, atividades guiadas e transfers do aeroporto de Alta Floresta (MT).
Tanto o hotel quanto a reserva são fruto do empenho de Vitória da Riva Carvalho, 79, uma protetora da natureza, reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa da conservação. “A floresta é como um templo”, diz. “Você tem que pedir licença para entrar. Assim como nos templos de crença e fé, ela tem sua energia.”
Em meio ao vaivém de aves, o pôr do sol no encontro dos rios Cristalino e Teles Pires exibiu uma explosão de cores. O céu já estava cravejado de estrelas na hora de retornar ao lodge. A canoa deslizava pelas águas graças à destreza do piloto fluvial Aldo Frank, 49, que aproveita o trajeto para contar que o Cristalino mede de 35 m a 40 m de largura, chegando a 60 m na embocadura, e que sua profundidade varia de 4 m a 13 m. Ao desligar o motor, ele suavemente se aproxima da margem onde avistamos o jacaretinga, espécie de jacaré que pode chegar a medir 2,5 m de comprimento e a pesar 60 kg.
Quando a escuridão se intensifica, um batalhão de insetos flana sobre as águas do rio.
O Cristalino, que passa em frente ao hotel de selva, nasce no extremo sul do Pará, na serra do Cachimbo, em área da Força Aérea Brasileira. Seu percurso é de 114 km até se juntar ao Teles Pires. É pelo rio que sempre nos deslocamos para apreciar diferentes ambientes ou simplesmente contemplar os reflexos das árvores espelhados nas águas.
O passeio de barco permite observar a anta, o maior mamífero do Brasil, que alcança 300 kg. Numa manhã de passeio, no sentido norte, a cerca de 5 km do hotel, um macho banhava-se na margem esquerda do Cristalino. Imediatamente, o barqueiro parou no meio do rio.
Antas, geralmente, optam pelo isolamento, segundo conta o guia. Elas costumam ser vistas próximas de outros indivíduos da espécie apenas em determinados momentos da vida, quando mães cuidam de seus filhotes ou casais estão enamorados. De repente, ouvimos uma espécie de assobio. Num primeiro instante, parecia ter vindo de um pássaro. O guia Bruno Castelo logo pede silêncio fazendo sinal com as mãos. Havia mais uma anta na outra margem do rio.
Antas têm por hábito comunicar-se com outros indivíduos da mesma espécie por meio de assobios e estalos. A resposta logo veio do outro lado. Rapidamente, o macho de cá cruzou o rio, passou por debaixo do barco e entrou na mata atrás da parceira.
A paisagem ganha novos contornos conforme subimos o rio. A 20 km do Cristalino, uma vegetação mais densa surge numa área alagável, repleta de um tipo de palmeira, a inajá. Nativa da região Norte, suas folhas há tempos são usadas pelos indígenas para cobrir as ocas.
Nas veredas dos buritis, o território é de canindés, que, barulhentos, atraem os olhares. É, no entanto, um casal de pavõezinhos-do-pará de voz aveludada que, ao ensaiar um ritual de acasalamento, domina a paisagem. Ocultas sob o dorso acinzentado, suas asas, então abertas em leque, revelam tons vibrantes de laranja e desenhos que lembram raios de sol, mas com extremidades pretas.
A embarcação segue próxima à divisa entre Mato Grosso e Pará, lugar em que o Cristalino forma uma lagoa lateral, hábitat de uma das aves mais impressionantes de toda a reserva, a cigana. Geralmente, vive em áreas alagadas, em bandos de até 50 indivíduos. O sistema digestivo dessa ave, também chamada de jacu-cigano, é composto de vários papos que facilitam a fermentação das folhas, frutos e sementes que consome.
No alto de uma árvore de 15 m, um trio de ciganas ostentava sua beleza intrigante: a espécie tem a face azul e um belo e rígido penacho laranja. Abaixo delas, borbulhas na superfície da lagoa formada pelo Cristalino denunciavam a presença de filhotes de pirarucu nas águas escuras do rio.
De volta ao lodge, no deque flutuante de acesso ao hotel, um gafanhoto com quase 20 centímetros, dono de uma coloração que passeia do verde-capim ao laranja, segue de antenas ligadas, porém indiferente a quem passa, sem mover as patas, que lembram botas de astronautas em versão miniatura. Os encantos da natureza estão por todos os lados da floresta.
O repórter e o fotojornalista viajaram a convite da Fundação Cristalino