Como Ouro Preto inspirou Tarsila, Mário e Oswald de Andrade há cem anos

Fernando Granato

OURO PRETO (MG)

Quem percorre as cidades históricas de Minas Gerais nos dias de hoje encontra monumentos, igrejas e obras de arte, representativas do barroco brasileiro, devidamente restauradas e preservadas. Essas cidades, sobretudo Ouro Preto, são verdadeiros museus a céu aberto com obras de artistas como Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e Manuel da Costa Ataíde, entre outros. Mas antes não era assim.

Por muito tempo essas obras foram relegadas ao abandono até que uma viagem de um grupo de intelectuais modernistas a essas cidades, há quase cem anos, foi determinante para lançar as bases do Serviço Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro, o SPHAN.

O órgão foi inaugurado em 1937, no governo de Getúlio Vargas, a partir de um anteprojeto do escritor Mário de Andrade. A viagem dos modernistas ocorreu na Semana Santa de 1924 e dela fizeram parte o próprio Mário, além de Oswald de Andrade, a pintora Tarsila do Amaral, a fazendeira Olivia Guedes Penteado, o escritor e mecenas Paulo Prado e o poeta suíço Blaise Cendrars.

O grupo pretendia buscar as raízes da arte brasileira naquela que chamaram de “a viagem da descoberta do Brasil”. A caravana partiu de São Paulo de trem rumo à cidade de São João del-Rei. Lá, o grupo se hospedou no Hotel Macedo, que conservou por anos em seu livro de visitas o autógrafo dos ilustres visitantes.

Com o humor que lhes era peculiar, os modernistas assumiram outras personalidades ao registrar no livro sua passagem pela cidade. “D. Olívia Guedes Penteado, solteira, photographer, anglaise, London. D. Tarsila do Amaral, solteira, dentista, americana, Chicago. Blaise Cendrars, solteiro, violinista, allemand, Berlin. Mário de Andrade, solteiro, fazendeiro, negro, Bahia. Oswald de Andrade Filho, solteiro, escrittore, suíço”.

A próxima parada foi na cidade de Congonhas, onde está uma das principais obras de Aleijadinho, o conjunto de esculturas em pedra-sabão que representa os 12 profetas, realizado entre os anos de 1800 a 1805. Na vizinha Tiradentes, Mário de Andrade registrou numa folha de papel jornal um poema que até hoje está nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiro, da Universidade de São Paulo, junto com todo seu acervo.

Não se sabe se é de sua autoria —se for, é inédito, porque nunca foi publicado— ou se foi recolhido por ele de algum popular, como era de seu costume. No texto, o escritor adota o nome antigo da cidade, São José Del Rey e usa da sua costumeira liberdade para grafar as palavras à sua maneira: “Havia um preso em S. José d´el Rey / Ha dose anos, um mês e um dia / Que estou preso em S. José d´el ReySi comi o coração dum homem / Si bebi seu sangue quente / Que têm os outros com isso?”.

Foi ali naquela cidade que também se deu uma passagem, citada por Mário de Andrade, anos depois, numa entrevista: “Em certa cidade, fomos objeto da curiosidade popular, devido ao grande número de pessoas e de bagagens”, contou Mário. “E, quando procedíamos à contagem das malas no hotel, fui abordado por um popular que desejava saber se éramos de circo. Aí, num momento de inspiração, perguntei a Tarsila: E os elefantes, onde estão? Não se pode calcular o sucesso da pseudocompanhia de circo na cidadezinha tranquila”. O ponto alto da viagem foi a visita a Ouro Preto.

“Minas coincidiu comigo”, confessaria Mário à poetisa Henriqueta Lisboa, em carta. O deslumbramento se deu na constatação de que Aleijadinho, filho de uma escrava e de um português, sintetizava tudo o que o grupo procurava como gênese da arte brasileira.

“Os nossos mestiços do fim da colônia glorificaram a ‘maior mulataria’, se mostrando artistas plásticos e musicais”, escreveu Mário. De acordo com ele, ali, em Minas Gerais, traduziu-se o verdadeiro barroco brasileiro, ao contrário da Bahia e do Rio de Janeiro, que teriam recebido forte influência portuguesa. De acordo com o modernista, a arte de Aleijadinho ganhava força “abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue na arquitetura”.

Tarsila do Amaral também falaria anos depois da influência da viagem na composição de sua obra: “Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras… Vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante…”. Pintura limpa, sobretudo sem medo dos cânones convencionais. Liberdade e sinceridade, uma certa estilização que a adaptava à época moderna.

A obra que mais sensibilizou os modernistas foi a Igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, uma das mais celebradas criações de Aleijadinho, que elaborou o projeto básico da fachada e da decoração em relevos e talha dourada.

Na época da visita, a obra se encontrava em estado de abandono, como atesta um poema escrito por Oswald de Andrade, chamado “Ouro Preto”, que faz parte de seu primeiro livro, “Pau Brasil”, lançado em 1925: “Vamos visitar São Francisco de Assis/ Igreja feita pela gente de Minas/ O sacristão que é vizinho da Maria Cana-Verde/ Abre e mostra o abandono/ Os púlpitos do Aleijadinho/ O teto do Ataíde…”

Hoje, restaurada, a igreja é um dos principais pontos de visitação em Ouro Preto, com suas duas torres arredondadas e elementos decorativos no estilo Rococó. Ao penetrar por sua portada esculpida por Aleijadinho, olhar para cima e vislumbrar a pintura de Manuel da Costa Ataíde no teto da nave, é impossível não pensar na reação dos modernistas que por ali passaram há quase cem anos.