SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na lista de dez livros obrigatórios no vestibular da Fuvest de 1989, primeira vez em que isso começou a ser exigido na Universidade de São Paulo, havia apenas autores homens. Todos eram brancos, exceto um: Machado de Assis, com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Já na lista anunciada para a prova de 2026, a instituição líder do Ranking Universitário Folha exige nove livros e uma maioria de escritores negros. Mas há só uma mulher Ruth Guimarães e seu “Água Funda”, que passam ser cobrados para os ingressantes de 2025.
Ao longo dessas décadas, só três vezes a USP exigiu mais de uma obra de autoria feminina, e nunca foram mais de duas autoras por vez. Em 2025, Guimarães estará ao lado de Cecília Meireles, mas a poeta de “Romanceiro da Inconfidência” some no ano seguinte.
Gustavo Monaco, professor de direito que assumiu no começo do ano a direção executiva da Fuvest, vê isso como “um enorme problema”. “O ideal é que as candidatas, que são mais da metade dos inscritos no vestibular, pudessem se reconhecer na lista de livros.”
Esse critério, afirma ele, será um dos que conduzirão as listas futuras. Mas outras instituições de ensino já fazem há anos uma seleção com paridade de gênero, como é o caso das universidades federais de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
“Foi uma conquista das professoras do grupo que escolhe as leituras obrigatórias”, diz Márcia Ivana de Lima e Silva, titular do Instituto de Letras da universidade gaúcha. “Nós íamos substituindo um nome masculino por um feminino.”
“Existe essa noção de que os homens constituíram a literatura brasileira, mas vemos que há autoras anteriores que foram esquecidas. A universidade tem o papel de mostrar para a comunidade a sua pesquisa, e a nossa mostrou que essas mulheres tiveram um apagamento pelo gênero, não pela qualidade.”
Esses dados surgem de um levantamento inédito feito pela Folha com base no histórico de todas as leituras obrigatórias já exigidas pelas universidades públicas mais bem qualificadas no ranking universitário elaborado pelo jornal, o RUF.
Das dez que estão nas posições mais altas, só cinco solicitam obras literárias específicas aos inscritos além das três citadas, fazem isso a Unicamp e a Universidade Federal do Paraná. A maior parte das outras universidades no topo do ranking usa como método primário de ingresso o Enem, uma prova sem lista própria de leituras.
Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília e referência em literatura brasileira contemporânea, afirma que listagens como essas, ao apontar o que é fundamental estar na prateleira dos estudantes, têm a capacidade de reforçar e transformar os cânones literários. “Mas também constroem novos.”
Por exemplo, ela cita “Úrsula”, romance escrito em meados do século 19 por Maria Firmina dos Reis, escritora negra que vem sendo cada vez mais reconhecida como pioneira e foi homenageada pela Flip no ano passado.
“Olha só como essas coisas funcionam. Esse livro foi redescoberto e trazido pela editora Mulheres, da Universidade de Santa Catarina”, lembra. “E de repente começou a entrar em listas de vestibulares de tudo quanto é canto. Um livro que tinha desaparecido agora está com 15, 20 edições diferentes e vendendo uma barbaridade.”
Manoel Teixeira dos Santos, coordenador da Comissão Permanente do Vestibular da UFSC, afirma que a paridade de gênero é deliberada na seleção. “A divisão entre autores e autoras, a representatividade negra são demandas cada vez mais relevantes, o que não significa abrir mão da qualidade literária.”
Nos últimos anos, houve um crescimento notável no percentual de escritores não brancos cobrados nas universidades paulistas, taxa que vem se mantendo estável nas federais catarinense e gaúcha e decrescendo na Universidade Federal do Paraná o único dos vestibulares que não atendeu aos questionamentos da reportagem.
Os critérios para definição de raça dos escritores, aliás, foram elaborados com base em pesquisa de referência do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o Gemaa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Difícil ignorar que a maior parte desses avanços na representatividade racial vieram depois da implementação da Lei de Cotas, que acaba de completar dez anos. Em alguns lugares, a diversidade já era impulsionada por certo regionalismo o poeta simbolista Cruz e Sousa, que é negro, costuma aparecer na lista da federal de seu estado, Santa Catarina.
Foi na instituição catarinense, por sinal, que uma mulher negra surgiu pela primeira vez como leitura obrigatória Conceição Evaristo com “Olhos dÁgua”, em 2017. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ano seguinte, passou a exigir “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, no que foi imitada depois pela Unicamp e pela federal paranaense. Ruth Guimarães se tornará, no ano que vem, a primeira mulher negra cobrada pela USP.
Dalcastagnè pondera, contudo, que o recorte feito pelo levantamento, por incluir apenas instituições do Sul e Sudeste, não dá conta de movimentos mais progressistas realizados em outras regiões do país. As universidades paulistas, segundo ela, costumam ser mais conservadoras em termos de inclusão.
Dito isso, a professora observa que os dados encontrados no levantamento da Folha espelham seus estudos sobre o material publicado em revistas acadêmicas um demonstrativo de que, mesmo que sigam porosas a demandas sociais, as listas refletem o que é produzido dentro de cada instituição. Por isso, mudanças significativas podem ser lentas e, às vezes, demoram gerações de pesquisadores para acontecer.
Às vezes, claro, a coisa é mais brusca. A Unicamp teve uma queda brutal na idade das obras exigidas em seu vestibular, ou seja, tem priorizado trabalhos muito mais recentes nos últimos anos, incorporando autores atuantes como a moçambicana Paulina Chiziane logo antes que ela levasse o prêmio Camões e, a partir do ano que vem, o imortal Ailton Krenak.
“A universidade tem passado por grandes transformações, muito por causa das ações afirmativas, por isso é importante ter a representatividade”, avalia José Alves de Freitas Neto, diretor da Comissão de Vestibulares da Unicamp.
“O nível de exigência continua o mesmo de antes. Nossa maior preocupação é que as pessoas ampliem seu repertório a partir do contato com a leitura e a literatura”, continua o professor, afirmando que isso surge tanto de livros mais tradicionais quanto de obras com “um debate mais contemporâneo”, que têm maior aproximação com os jovens.
Isso tem significado ir além dos livros. A UFRGS foi a primeira universidade a cobrar álbuns de música como obrigatórios, com um disco dos Mutantes em 2015, logo seguido por “Elis e Tom” e Chico Buarque. A Unicamp incluiu “Sobrevivendo no Inferno”, do Racionais MCs, de 2020 a 2023, agora substituído pelo sambista Cartola.
E Santa Catarina começa a pedir o roteiro do filme “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de 2006. Segundo o coordenador da UFSC, a intenção não é desvalorizar as obras clássicas, mas valorizar novas discussões.
“Sabemos que os jovens leem cada vez menos, em linguagens diferentes a que estávamos acostumados. É papel indutor dos vestibulares recuperar isso”, afirma Gustavo Monaco, da Fuvest.
Isso quer dizer continuar, sim, se aprofundando na história literária do Brasil e realizando “um dos vestibulares mais criteriosos do país”. Mas ele diz “não ver com maus olhos” uma eventual troca de todos os livros exigidos na prova. “Sobretudo se conseguirmos montar uma lista com mais representatividade.”
COMO O LEVANTAMENTO FOI FEITO
A reportagem tabulou todas as obras já solicitadas nas listas de leituras obrigatórias das universidades mais bem avaliadas do RUF que têm vestibular próprio: foram mais de 350 obras de 180 autores e autoras em cinco universidades.
A classificação racial foi feita em três etapas. A primeira foi buscar a autodeclaração, principal critério usado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Quando isso não foi possível, a reportagem usou artigos acadêmicos, entrevistas e outros registros históricos que tivessem essa informação. Esse trabalho foi capaz de resolver 17% dos casos.
Para os 83% restantes, a Folha se baseou na metodologia de heteroidentificação racial do Gemaa, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, referência em produção de dados raciais no Brasil na ausência de autodeclaração.
Para isso, o jornal montou uma banca com seis voluntários, de origens geográficas e autodeclarações de raça diversas. Os integrantes foram submetidos a imagens de cada um dos autores e os classificaram de acordo com os grupos raciais do IBGE (amarelo, branco, indígena, pardo e preto). Pardos e pretos foram agregados na mesma categoria (negros).
A partir disso, a reportagem verificou a categoria mais indicada para cada autor. Nos casos de empate, a escolha foi pela categoria mais sub-representada para verificar se, mesmo com esse critério, a sub-representação persistiria. A taxa de concordância média entre os aferidores foi de 95,1%.