SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “São coisas da vida”, diria Rita Lee. A canadense Alanis Morissette é daqueles prodígios que sempre soube o que quis. Desde que aprendeu a balbuciar as primeiras palavras, canta. E assim que desvendou a escrita, aos seis anos, escreve sem parar. Aos nove, compôs a primeira música que considerou aceitável. Chamava “Fate Stay With me”.

Gravou no seu quarto, só voz e violão. Juntou com uma versão cover de “Material Girl”, de Madonna (quem mais?), e mandou para uma dupla de cantores canadenses chamada “Lindsay and Jacqui”, de amigos de seus pais, que mostraram para uma gravadora local.

Gravou o primeiro demo em 1985, aos 11 anos. Inquieta, a fim de trabalhar e conquistar o mundo, participou de um programa infantil da Nickelodeon no ano seguinte, chamado “You Can’t Do That on Television”, que fez da pré-adolescente uma celebridade em seu país. Mas ser estrela de programas infantis não era nada do que ela queria.

Partiu para competições de talento, no Canadá e nos Estados Unidos, o cálice sagrado para qualquer artista canadense. Como já era famosa, além de linda, simpática, inteligente e afinada, conseguiu um contrato com uma gravadora, a MCA Records, que lançou seus dois primeiros discos, “Alanis”, de 1991, e “Now is the Time”, de 1992.

Na época, ela fazia os shows de abertura da turnê do rapper Vanilla Ice. Mas isso ainda estava bem longe do que ela queria. Então, tomada por aquele mix de coragem com falta de juízo típico de quem sabe que vale mais do que o mercado oferece, se mudou para Los Angeles em busca de holofotes mais potentes.

E aí conheceu Guy Oseary, até hoje o empresário de Madonna, da Maverick Records, que, não por acaso, era de Madonna. Ela não era a dona da gravadora, mas foi uma das fundadoras e era a responsável pelo selo Maverick, um dos braços da empresa de entretenimento Warner Music Group.

O primeiro lançamento da Maverick Records foi, estranhamente, um livro. Era “Sex”, de Madonna, que saiu junto com o álbum “Erotica”, ambos de 1992. O selo era uma máquina poderosa de marketing. E, quando decidiu ter Alanis entre seus artistas contratados, não era para fazer nada com discrição.

Em 1995, a canadense de 21 anos, longos cabelos pretos e muita atitude, lançou “Jagged Little Pill”, um álbum totalmente diferente do pop fofinho e da imagem de boa menina que Alanis tinha até então.

Foi um choque. As músicas, que alternavam vocais gritados com outros sussurrados, letras que falavam explicitamente de sexo, namoros frustrados, traição, agressão, aliado ao rock com toques de punk e grunge, parecia falar diretamente com as meninas, mulheres, com todo mundo, na verdade.

No Canadá, foi um cataclisma. Era como se a Angélica tivesse sido possuída pelo espírito de Courtney Love, que tinha acabado de lançar seu disco mais potente com a banda Hole, “Live Through This”.

“Jagged Little Pill” fez tanto sucesso, mas tanto, que mudou até o rumo da história, e ganhou esse aposto de ‘álbum de estreia de uma mulher mais vendido do mundo’, apesar de ter sido o terceiro álbum de Alanis.

Detalhes. Podia ser o único. Ia ser eterno de qualquer maneira. Com o carro-chefe “You Oughta Know”, em que o então guitarrista do Red Hot Chilli Peppers, Dave Navarro, tocava, junto com Flea, o eterno baixista da banda, e que tem o refrão gritado mais delicioso de cantar no meio da multidão, podia ser até só um single, que já ia garantir seu lugar na história do pop.

Mas não. Ainda tem “Ironic”, que conseguiu a proeza de ser ainda mais bem-sucedida nas paradas que “You Oughta Know”, e acendeu debates na imprensa (em 1995 ainda não existiam as redes sociais. E a vida era boa, acredita?) sobre se o que a letra descreve, várias situações que Alanis considera irônicas, correspondem ao significado dicionarizado de “ironia”.

O investimento da Maverick no lançamento do álbum foi tanto que sobrou até para mim. Trabalhava como repórter da revista Capricho, da editora Abril, uma publicação voltada para adolescentes considerada ideal para divulgar o disco em que Madonna apostava pessoalmente. A revista recebeu um convite para mandar alguém a Los Angeles, com duas diárias do incrível hotel Bel Air, para uma entrevista. Fui a escolhida.

A editora Abril tinha como política nunca aceitar esse tipo de convite, e jamais que uma revista brasileira ia botar uma repórter de 20 anos num hotel cinco estrelas, ainda mais o Bel Air! Mas a gravadora deve ter vendido a ideia tão bem que a minha chefe resolveu pagar a viagem, com Bel Air e tudo, para garantir a exclusividade.

E lá fui eu enfrentar um voo de 12 horas com visto de turista para ficar dois dias na Califórnia, a trabalho. O que parecia natural tanto para mim quanto para os executivos da Maverick não soou nada razoável para o oficial da alfândega americana, que não engoliu a explicação de que eu tinha viajado todo aquele tempo e ia ficar em um hotel tão luxuoso só por duas noites, para fazer turismo.

Depois de umas três horas de espera em uma salinha no aeroporto, em que cada hora entrava um oficial mais nervoso e mais desconfiado, enquanto minha bagagem era revirada por cães farejadores no corredor, eu disse, exausta, que tinha ido encontrar “uma pessoa”. E que esse “encontro” duraria no máximo uma hora.

O oficial também já estava cansado daquilo. Eu não tinha drogas, armas, nada que apontasse para algum crime evidente. Minha bagagem era de mão, com duas trocas de roupa, um pijaminha e uma necessaire, e eu tinha emprego no Brasil. Então, insinuando que eu só poderia ter feito aquela viagem, tão longa e tão curta, se o tal “encontro” com a tal “pessoa” fosse muito importante, ele finalmente me liberou para entrar no país, e vai saber a que conclusão chegou.

“Isn’t it ironic?”, não é irônico, me pergunta Alanis Morissette, quando eu conto a saga do aeroporto para ela, no dia seguinte à minha chegada, em uma conversa ótima, que durou bem mais de uma hora, e me fez ficar mais fã ainda.