MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – No último dia de outubro, a cidade de Kherson, na Ucrânia, amanheceu contando os danos de ataques russos que atingiram, segundo autoridades, bairros residenciais, prédios administrativos e uma biblioteca, deixando civis mortos e feridos. Era o 614º dia de guerra.
Naquela mesma manhã, em Milão, ministros e prefeitos italianos e ucranianos, representantes do Banco Mundial e de agências da ONU, arquitetos e professores participavam alguns de forma remota de uma conferência sobre a reconstrução da Ucrânia, organizada pela Triennale di Milano e pelo museu Maxxi de Roma, duas proeminentes instituições culturais da Itália.
Apesar de a guerra seguir indefinida, sem perspectivas de término, diversas iniciativas locais e internacionais de reerguimento do país buscam avançar em meio às incertezas. Além do evento milanês, fóruns com o tema aconteceram em Londres, em junho, e em Bucareste, em outubro. Outro, em Varsóvia, está agendado para esta semana.
Em Milão, foram apresentados trabalhos em andamento, desde a proteção da Catedral da Transfiguração, em Odessa, parcialmente destruída por mísseis russos em julho, até o desenvolvimento de projetos de planejamento urbano para as cidades de Mikolaiv, Irpin e Kharkiv, com a coordenação de escritórios multinacionais de arquitetura e engenharia.
A tônica das avaliações é que pensar agora na reconstrução, mesmo sob bombardeios, não serve apenas como sinal de esperança para a população ucraniana. É algo que deve ser visto como oportunidade para requalificar cidades e incentivar a volta de milhões de refugiados que passaram a viver em outros páíses para a nação; de encaminhar negócios com fornecedores; e de preparar o país para a entrada na União Europeia, um longo processo que avançou mais um passo na última semana.
“Não é cedo para pensar na reconstrução. Quando acabar a guerra, vão chegar fundos internacionais para reerguer o território, e é preciso haver um plano para direcionar esses recursos”, diz à Folha a arquiteta Ana Paez, diretora do projeto de plano diretor para Mikolaiv, coordenado pela empresa de engenharia urbana One Works, em Milão. “Em vez de pontos de obras, é preciso pensar em um sistema que vai reativar empresas locais, oferecer trabalho e promover a economia circular.”
Ainda que a Itália se apresente como detentora de expertise em restauração pós-guerra há 80 anos, Milão foi severamente danificada por bombardeios aéreos, são os britânicos que têm servido de referência.
“Londres é um exemplo histórico. A cidade começou a trabalhar em seu plano diretor em 1943, dois anos antes de acabar a Segunda Guerra. Isso a permitiu ter uma renovação muito forte na reconstrução”, diz Paez.
Em termos financeiros, as conversas também avançam e, no fim de outubro, o Parlamento Europeu aprovou proposta da Comissão Europeia de disponibilizar 50 bilhões de euros (cerca de R$ 260 bilhões) em incentivos e empréstimos para a reconstrução e modernização da Ucrânia entre 2024 e 2027. O Banco Mundial calcula, porém, que para recuperar o país dos danos causados apenas no primeiro ano da guerra, completados em fevereiro, são necessários US$ 411 bilhões (mais de R$ 2 trilhões).
O projeto de planejamento urbano para Mikolaiv, cidade industrial portuária que teve mais de 1.300 locais danificados, inclui a reconstrução de casas e de infraestrutura de energia e água, mas também a criação de uma nova rede de mobilidade, calcada na sustentabilidade, e protagonismo para áreas verdes.
Segundo Paez, o desenvolvimento do plano diretor hoje está no fim de sua segunda fase, com a conclusão de análises setoriais acerca de áreas como transporte e biodiversidade. Em janeiro, será aberta a etapa de propostas de projetos para cada setor.
Além de reparos emergenciais já em andamento, como em estradas, as demais ações são planejadas levando em conta o cenário de extrema incerteza. Não só do ponto de vista bélico, com possibilidade de novos danos, mas também do demográfico. “Não sabemos quando acabará a guerra, não sabemos quanto da população voltará a viver na cidade e não sabemos quantas pessoas deveremos atender”, diz a arquiteta.
O grupo, que tem reuniões remotas semanais com técnicos do município, trabalha com três cenários de tamanho populacional. Se o fim do conflito ocorrer nos próximos meses, a quantidade de refugiados que voltará para a cidade tende a ser maior do que se a guerra se estender por mais vários anos. Mais da metade dos cerca de 460 mil moradores de Mikolaiv chegou a deixá-la desde o início do conflito.
Como ela, as cidades de Kharkiv e Irpin também têm seus planejamentos urbanos para o pós-guerra em desenvolvimento por escritórios de fora da Ucrânia os três em caráter pro bono, alinhados à ideia de aproveitar a oportunidade para, além de reconstruir, requalificar. A Norman Foster Foundation, ligada ao renomado arquiteto inglês, coordena os trabalhos para Kharkiv, enquanto os americanos do escritório Gensler assumiram o plano diretor de Irpin.
Cada uma dessas cidades tem tecidos urbanos diferentes, e seus planos de reconstrução estão em momentos distintos. Em Odessa, por exemplo, a continuidade dos ataques russos que no início de novembro danificaram o Museu de Belas Artes, localizado em um edifício do século 19, faz com que a prioridade seja a proteção de monumentos.
Em julho, a Catedral da Transfiguração já tinha sido gravemente atingida por mísseis. Embora a reconstrução não tenha condições de ser iniciada, a Unesco, agência da ONU que atua nas áreas de cultura e patrimônio, coloca a operação de pé. O levantamento de danos foi documentado em 3D e uma equipe italiana de restauração arquitetônica estuda o projeto, enquanto é reforçada a estrutura do que restou.
Já Irpin, um dos primeiros alvos no início da agressão russa, tem alguns avanços para mostrar. Há mais de um ano, em agosto de 2022, foi lançado um fundo para recolher doações em dinheiro e em materiais de construção para a recuperação da cidade. Mais de 1.500 famílias puderam reformar suas casas por meio deles.
Irina Iarmolenko, representante da associação dos municípios ucranianos que atua com a prefeitura de Irpin na mobilização da comunidade internacional, diz que uma escola infantil será reinaugurada no próximo dia 18, com ajuda da prefeitura de Cascais, em Portugal. “Acreditamos no nosso futuro. Reconstruir é uma forma de resiliência”, diz.