SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Lançado em 2002, “Cidade de Deus” foi um marco do cinema nacional. Dali surgiram personagens como Dadinho, Buscapé e Zé Galinha; as comunidades do Rio de Janeiro foram mostradas com uma crueza como nunca antes na história deste país. Mas e as mulheres? Alguma personagem muito marcante? Vinte anos depois, a nova série, spin-off produzido pela HBO Max, quer fazer uma espécie de “correção histórica” e direcionar os holofotes para as mulheres, sub-representadas na versão original.

No filme de 2002, Alice Braga era Angélica, a namorada de Buscapé. A mulher de Mané Galinha estava lá, mas não tinha nome. Agora, a nova produção quer destacar a potência das personagens “empreendedoras, batalhadoras, donas de si mesmas” das favelas e periferias. É o que Renata Di Carmo, atriz e roteirista da série, contou à Folha de S.Paulo.

“A gente está falando de mulheres que pegam três ônibus para trabalhar, que trabalham durante o dia e fazem uma faculdade à noite, que precisam trabalhar e não conseguem um emprego e abrem um salão de beleza. Elas dão um jeito. Cuidam dos seus filhos, cuidam dos seus netos”, disse Renata.

Berenice é uma delas. Interpretada por Roberta Rodrigues, ela era a “mulher do Cabeleira” na versão original. Agora ela é uma profissional do ramo da beleza, que entra para o mundo da política e vira vereadora. A personagem é inspirada em Marielle Franco: “Na figura e na potência da Marielle, na história de força dela, na história de uma mulher desbravadora, que foi abrindo seu caminho e foi construindo sua história”.

Apesar de a série também retratar o confronto entre polícia, milícia e comunidade, na ficção, a vereadora não terá o mesmo destino fatal de Marielle. “A gente criou uma perspectiva dessa personagem na ficção. É uma mulher negra, que atinge uma posição de liderança e deixam ela viver, que é o que a gente gostaria que tivesse acontecido”, diz Renata.

Cintia, personagem de Sabrina Rosa, é uma professora de música, agente de transformação na favela. “Ela trabalha com jovens ali dentro, então ela faz um outro tipo de política. Ela procura cesta-básica quando as pessoas precisam. Tem toda essa dinâmica coletiva também, de apoio, de rede”. Para a escritora, as mulheres são as verdadeiras responsáveis pela dinâmica de solidariedade e fortalecimento coletivo nas comunidades cariocas.

Buscapé, lembra dele?, volta à Cidade de Deus como fotógrafo. Ele agora tem uma filha funkeira, que, segundo Renata, deve trazer discussões sobre a objetificação do corpo da mulher. “Através do funk, ela promove mudança para a sua própria vida e para a vida de outras pessoas”.

Há ainda a personagem de Andreia Horta, uma advogada escrupulosa, com sede de riqueza, criação da própria Renata.

Em 2002, o filme teve roteiro e direção de Fernando Meirelles, Bráulio Mantovani e Kátia Lund. Agora, Renata, a única roteirista negra da trama, celebra a conquista de representatividade, mas deixa claro que ainda há muito pela frente: “Em 1999 eu assinei a minha carteira na TV Globo como autora-roteirista. Óbvio que eu olhava para os lados e eu não via ninguém como eu. Eu via majoritariamente homens ou, na sua minoria, mulheres brancas. Eu vim da periferia do Rio de Janeiro”.

“A gente vê diferenças agora porque existem muito mais mulheres negras trabalhando. Porque as pessoas estão em posições de liderança. Há programas que conseguem incorporar profissionais negros e estabelecerem minimamente um plano de carreira para essas pessoas”.

A escritora fala também sobre o objetivo da série de desmontar os estereótipos construídos sobre as mulheres negras: “Essas personagens são fortes, mas elas têm direito à fragilidade. Mesmo colocando-as na perspectiva da intelectualidade, permitimos que elas vivam um cotidiano não só de dor”. “É um cotidiano de uma mãe que abraça o filho quando chega da escola, que prepara festa de aniversário, que frequenta a escola de samba”.

“Cidade de Deus” tem ainda Marcos Palmeira (Curió), Alexandre Rodrigues (Buscapé) e Edson Oliveira (Barbantinho) no elenco. A direção é de Aly Muritiba de “Deserto Particular” e “Cangaço Novo”. A estreia está prevista para 2024 no streaming da HBO.