SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As notícias vindas do Morro do Índio, em Cubatão (SP), deixaram Reinaldo Bock Coutinho, o Chuck, enfurecido. Um traficante apelidado de Pivete reivindicava a posse de um ponto de drogas pertencente ao território de Chuck, a Adega. Além disso, Ratinho, outro criminoso conhecido, insistia em abrir uma “boca” no beco da Farinha -iniciativa já vetada anteriormente por Príncipe, “disciplina” da região (como é chamado quem impõe ordens do crime organizado).
Não podendo resolver a questão pessoalmente, já que à época estava preso em uma penitenciária de Mirandópolis (SP), Chuck mandou avisar os parentes e os outros envolvidos na história que os chefes do PCC tinham sido acionados para solucionar o impasse, e seriam eles quem arbitrariam sobre o tamanho exato da “loja” de cada um e, ainda, sobre o que fazer com Ratinho.
Mais do que uma disputa de um morro do litoral paulista, os diálogos e documentos interceptados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de São Paulo são uma demostração do papel da facção criminosa PCC no controle dos territórios de venda de drogas no estado, incluindo o poder de decisão de quem pode ou não pode vender drogas nas ruas.
Essa situação, segundo a polícia e promotores ouvidos pela reportagem, ocorre em praticamente todo o território paulista e se estende a cidades de outros estados, como parte do Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais.
“A pessoa não escolhe se vai abrir ou não, onde vai abrir, qual é a área dela. Isso é o PCC que determina”, diz o promotor Silvio de Cillo Leite Loubeh, do Gaeco (grupo da Promotoria especializado no combate ao crime organizado) de Santos (SP), responsável pela investigação de Chuck.
“Você não pode dizer: ‘vou começar a vender maconha e cocaína aqui nesta esquina’. Não existe isso. Você só vai vender ali se for autorizado pelo partido [PCC] a vender. Ou vai ter que comprar o ponto de outro traficante, e mesmo isso passa por uma autorização. Em todo o lugar do estado é assim, a não ser um local aí perdido, mas acho difícil”, explica.
Os documentos apreendidos pelas polícias e Promotoria mostram que esse domínio foi se consolidando ao longo dos anos. Atualmente, no estado de São Paulo, ainda que o traficante não pertença ao grupo, só pode comercializar drogas fornecidas por integrantes do PCC.
Na prática, isso significa que todos os territórios de venda de entorpecentes, as chamadas lojas, são do PCC. Esses pontos, por serem considerados da “Família”, são vendidos ou arrendados para criminosos parceiros como uma espécie de franquia, a exemplo do que ocorre em redes de restaurantes fast food –comparação usada por delegados e promotores.
Esse domínio limita a concorrência entre os traficantes ligados à facção e afasta “autônomos”.
Para o procurador Marcio Sergio Christino, especialista em crime organizado, essa estrutura empresarial do PCC extinguiu a figura do pequeno traficante. Para ele, quem vende drogas nas “biqueiras” é como um funcionário de uma loja de departamentos.
“Dá para afirmar, com toda certeza, que hoje em dia não existem traficantes independentes, não existem pequenos traficantes. São todos empregados de uma empresa chamada PCC”, diz o autor do livro “Laços de Sangue”, sobre o PCC, publicado pela editora Matrix.
Ainda conforme o procurador, esse monopólio no estado de São Paulo, em especial para a cocaína, começa já na Bolívia, onde o PCC tornou-se o único comprador oficial, após acordo com os produtores locais.
“Não é que vão falar: ‘você não pode vender [em SP o que comprou na Bolívia]’. Vão dar duas escolhas: ou você vende nos termos deles ou vai para o ‘saco'”, conta.
Christino afirma ainda que o crime mapeia vendedores autônomos por meio do comportamento dos usuários. “Quem acaba mostrando isso são os viciados. Eles mesmos falam: ‘olha, você está me vendendo aqui, mas estou comprando do outro mais barato’.”
Também para o diretor do Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico), Ronaldo Sayeg, um traficante autônomo se tornou algo raro em São Paulo.
“Não é impossível [vender sem ligação com o crime organizado], você até pode. Mas vai comprar de quem a mercadoria? Você vai fazer tudo sozinho? É um molde empresarial, do qual o crime acaba se aproveitando. Ele é o facilitador para quem quer ter uma boca de fumo”, afirma o delegado.
Documentos apreendidos pela Polícia Civil mostram que, em 2016, a cidade de São Paulo era dividida em cinco grandes regiões e subdividida pela facção em 55 áreas, cada uma com várias “biqueiras”. Planilhas revelam que, no caso de “lojas” pertencentes ao PCC, os “gerentes” ficam com 5% do dinheiro desses pontos. Os demais “funcionários” dividem outros 15%, e o restante (80%) fica para a cúpula.
Já nos pontos de venda de “franqueados”, segundo policiais e promotores, os salários de “funcionários” variam conforme a região. O dono precisa, porém, seguir regras e, se eventualmente descumpri-las, o PCC pode tomar o ponto e vendê-lo a outro.
Investigações do Ministério Público indicam que os pontos são vendidos por valores que vão de R$ 50 mil a até R$ 3 milhões, dependendo da localização.
Delegados do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) ouvidos pela Folha afirmam que, nas investigações dos chamados mega-assaltos, descobriu-se que parte dos criminosos compra “biqueiras” com os recursos obtidos nessas ações, uma forma considerada segura de lavar o dinheiro.
O PCC foi fundado em 1993 e tinha, inicialmente, o propósito de ser uma espécie de associação de assistência aos presos e seus familiares contra a “opressão do Estado”.
De acordo com a polícia e Promotoria, após Marco Willians Herbas Camacho assumir o comando da facção, entre o final de 2002 e o início de 2003, ela começou a se transformar em uma espécie de empresa de tráfico de drogas. O registro das primeiras negociações dos criminosos com produtores estrangeiros está em uma carta apreendida pela Rota (tropa de elite da PM) em 2008.
De acordo com integrantes da Polícia Federal, os principais chefes da facção, que integram a chamada “sintonia final”, não estão diretamente ligados ao tráfico das “lojas”, mas, sim, ao internacional, que é muito mais rentável –um quilo da pasta-base da cocaína chega valer 40 mil euros na Europa.
Independentemente do grau de hierarquia que ocupem na estrutura, porém, todos respondem pelo crime de tráfico de drogas, destaca Sayeg. “Transportar, guardar, ocultar, trazer consigo, vender… Tem 18 verbos no artigo 33 [da Lei 11.343/2006, sobre o tráfico de drogas]”, diz.
“Pela lei, todos são [traficantes], porque só tem um crime de tráfico. O que poderia ter, por meio de uma alteração legislativa, seria uma gradação. Ou seja: diferenciar o cara que está vendendo do cara que está produzindo ou transportando. Eu acho que é muito mais nocivo e perigoso aquele cara que transporta uma tonelada do que aquele que está vendendo”, opina.
COMO FUNCIONA O TRÁFICO DE DROGAS EM SP
‘Padaria’
Local de preparação da droga quando chega do exterior.
‘Casa-bomba’
Local de armazenamento das drogas a serem enviadas para as “lojas”.
‘Loja’
Ponto de venda, também chamado de “biqueira”.
Tipos de ‘lojas’
Podem ser próprias da facção ou de parceiros (como franquias). Nas próprias, 80% do dinheiro fica com o PCC, 15% com os “funcionários” e 5% com o “gerente”. Nas de parceiros, os valores pagos a “funcionários” e “gerentes” variam conforme a região, com regras impostas pelo PCC.
Quando custa uma ‘loja’?
De R$ 50 mil a R$ 3 milhões.
Qualquer pessoa pode comprar uma ‘loja’?
Não, o crime organizado precisa autorizar a compra.