SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem caminha pela rua Soriano, a poucas quadras da praça Independência, na capital do Uruguai, em geral não sabe que no edifício que hoje abriga o hotel boutique Splendor, hospedou-se, por dois meses em 1954, o escritor argentino Julio Cortázar.
Tampouco existe muito modo de saber isso, uma vez que as referências a essa passagem desapareceram quando o pequeno e histórico edifício que antes se chamava hotel Cervantes foi reformado e transformado no atual.
Naquela época, sim, havia menções da passagem do autor de “Todos os Fogos o Fogo” por ali. Os hóspedes eram inclusive informados que, em sua estada na suíte 205, Cortázar tinha escrito “A Porta Condenada”, depois publicado em “Fim de Jogo”, de 1956.
Em seu mais recente romance, “Montevidéu”, lançado agora no Brasil com tradução de Júlio Pimentel Pinto, o escritor espanhol Enrique Vila-Matas, 75, cria um narrador que é “um errante, um oportunista, mas inundado de literatura”, conta ele por telefone.
O personagem vive primeiro em Paris, com a pretensão de se converter em um escritor, embora rapidamente troque essa atividade pela de traficante de drogas. Em suas viagens, começa a se sentir fixado pelas conexões possíveis através de quartos contíguos, separados apenas por uma porta interna, que não necessariamente abre.
É o que acontece na porta do quarto em que o narrador está hospedado em Montevidéu, então tapada por um móvel através do qual se ouve uma criança chorando e sendo consolada pela mãe. A saga das portas e suas conexões segue por vários lugares em que se hospeda o narrador, em Bogotá, Cascais, Reykjavik e de volta a Paris, cidade referência de Vila-Matas.
É curioso ressaltar que aquele mesmo quarto de hotel inspirou não só o conto de Cortázar como outro do argentino Adolfo Bioy Casares.
Indagado se esses enigmas não eram um modo de voltar a ver o mundo por enfoques distintos de suas viagens, Vila-Matas responde: “Quando começa o livro, meu narrador pensa que o mundo já não tem como ser narrado, o que acaba sendo todo o contrário, porque sempre há ângulos inexplorados”.
O romance conta como alguém, atropelado por episódios que lhe ocorrem, “termina regressando à arte de narrar”.
Foi o que ocorreu, de certa forma, com o próprio escritor catalão, que no ano passado adoeceu de modo grave e foi obrigado a realizar um transplante de rim. A doadora foi sua mulher.
“Quando já estava no pós-operatório, recuperando-me em casa, agarrei o rascunho de ‘Montevidéu’, que já estava quase pronto. Mas ao trabalhar nele, fui recuperando uma energia, me senti revitalizado e criei sobre o próprio livro. Muitas coisas na história mudaram, mas foi meu modo de renascer de modo literário”.
Nunca é fácil falar de rótulos literários, e talvez nem faça tanto sentido, mas para esta novela talvez seja um exercício interessante. Vila-Matas concorda.
“Às vezes me perguntam se sou um ensaísta que se disfarça de narrador ou um narrador que se situa no espaço do ensaio para exercer a arte de contar. Minha impressão é que, há algum tempo, depois de publicar ‘Bartleby & Companhia’ em 2000 e iniciar ‘O Mal de Montano’, tomei a decisão de escrever ficção a partir de um um espaço geralmente ocupado por ensaístas e poetas: um ‘eu literário’ visível.”
O escritor mexicano Álvaro Enrigue disse a Vila-Matas que ele era um “escritor fantasma”. “Creio que minha obra pode ser lida como um contínuo no qual histórias e gêneros se misturam: meus livros de artigos fluem para meus romances, que fluem para seus ensaios, que fluem para os contos”.
Diante de uma pergunta sobre sua maior angústia no mundo de hoje, ele responde que é a estupidez.
“Passou um século e o panorama mundial da imbecilidade se ampliou, o que, embora continue sendo risível e nos dê material para o humor, é muito alarmante. Claro que, no fundo, catástrofes de tal magnitude já foram previstas por Flaubert quando ele disse que havia um único mal que nos afligia: a estupidez.”
Isso, para o autor, não apenas mata a possibilidade de fazer ironias, mas a capacidade de a humanidade realizar estupidezes.
“É uma estupidez temível e universal. Por exemplo, quando se fala na embrutecimento das massas, fala-se em termos injustos e incompletos, já que na realidade seria necessário ilustrar as classes ilustradas, começando pelas que estão no poder, pela elite, para nos entendermos. É a mais inculta que já existiu. Deveríamos começar pela elite, educar a ignorante classe política. E quem será corajoso o bastante para tentar?”
MONTEVIDÉU
– Preço R$ 99,90 (240 págs.)
– Autoria Enrique Vila-Matas
– Editora Companhia das Letras
– Tradução Júlio Pimentel Pinto