SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O processo de atualização das políticas de defesa nacional está sendo encaminhado pelo governo Lula (PT) sem participação da sociedade civil.

Ao todo foram criados dois grupos de trabalho no Executivo com objetivo de debater a Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa para os anos de 2024 a 2027, além de outros dois grupos para discutir o Livro Branco de Defesa Nacional.

A legislação prevê que, a cada quatro anos, cabe ao governo encaminhar para o Congresso a atualização desses três documentos, que norteiam o planejamento das ações de defesa do país, abarcando por exemplo a definição de programas para investimento e ameaças à soberania nacional.

Iniciado ainda ao final da gestão de Jair Bolsonaro (PL), o processo tem seguido em 2023 sem a inclusão de associações, acadêmicos e especialistas, apesar de as próprias normas preverem a possibilidade de que sejam convidadas pessoas ou representantes de outras instituições para assessoramento ou participação, ainda que sem direito a voto.

Especialistas ouvidos pela reportagem defendem uma maior abertura e institucionalidade do debate com atores externos ao governo ou às Forças Armadas –o que tem se restringido a simpósios. Apontam ainda que esses eventos têm sido cada vez mais restritos.

A importância de diversificar o debate aparece sob diferentes argumentos. A mudança acelerada das tecnologias e da situação geopolítica, por exemplo, aparece como elemento que justificaria a presença de mais atores na tentativa de abarcar um cenário global cada vez mais complexo.

Há quem aponte também a importância de impedir que interesses corporativos de cada uma das Forças – Exército, Marinha e Aeronáutica– acabem por dominar o teor desses documentos.

Para o processo de atualização da Política Nacional de Defesa foram criados dois grupos de trabalho distintos.

Cabe a eles debater ainda a Estratégia Nacional de Defesa, que busca detalhar ações para efetivar na prática aquilo que está previsto na política, que é tida como o mais importante dos três documentos.

O grupo do Ministério da Defesa teve ao todo 24 reuniões, 12 delas de outubro a dezembro do ano passado, ainda sob Bolsonaro, e o restante de fevereiro a maio deste ano.

Por outro lado, o grupo de trabalho interministerial, composto por diferentes pastas, foi instituído apenas em setembro deste ano e se reuniu apenas uma vez.

Segundo a pasta da Defesa, estão previstos outros três encontros, podendo ocorrer novas reuniões conforme os trabalhos forem prosseguindo. O prazo para o fim dos trabalhos é maio de 2024.

O decreto que instituiu o grupo, porém, previa que o cronograma de encontros deveria ser aprovado na primeira reunião, enquanto convocações em caráter extraordinário caberiam ao Ministério da Defesa, que preside o grupo.

No grupo da Defesa, os debates contaram apenas com integrantes das Forças Armadas e do ministério. Conforme portaria de nomeação do fim de 2022, de 16 titulares designados para compor o grupo, 2 são civis. Não foram convidados atores externos, apesar de a portaria permitir.

Também no grupo interministerial, cabe à Defesa convidar órgãos e entidades públicas e da sociedade civil. Questionada a respeito, a pasta disse que houve convite às comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado e da Câmara e à Assessoria Especial do Presidente da República.

Ao longo do processo, o único evento organizado sobre a política de defesa e em que houve participação de acadêmicos, por exemplo, foi um simpósio na Escola Superior de Guerra (ESG) no Rio de Janeiro em 30 de novembro do ano passado.

O cenário é similar nos dois grupos de trabalho criados para debater o Livro Branco da Defesa Nacional, documento que tem uma função de informar a sociedade e a comunidade internacional sobre as políticas e visões do país sobre a área.

Foram 6 reuniões no grupo da Defesa, que tem a maioria de seus integrantes militares. Já o grupo interministerial teve apenas uma reunião em julho, com intenção de que se realizem ainda de 3 a 5 encontros.

A Defesa informou que não foi definida uma agenda fixa de reuniões na primeira reunião, devido aos “trabalhos desenvolvidos pelos contatos permanentes” com os integrantes do grupo via meios eletrônicos.

Também informou que realizou, de modo complementar, dois simpósios, um em março e outro em abril, com diversos ministérios e que mantém contatos permanentes com estudiosos de Defesa Nacional pertencentes a instituições da sociedade civil.

Marina Vitelli, professora adjunta da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e pesquisadora da área, avalia que seria importante haver mais participação da sociedade civil, mas ressalta que o básico seria ter um corpo de servidores de carreira civil no Ministério da Defesa, com conhecimento especializado.

“A gente tem pouquíssima participação de civis na formulação da política de defesa”, diz ela, que também aponta a importância de um maior envolvimento dos parlamentares ao apreciar essas políticas.

A etapa final do processo de atualização é o envio dos textos pelo presidente Lula ao Legislativo. Até o momento, no entanto, as políticas enviadas em 2020 por Bolsonaro ainda não foram aprovadas pela Câmara. O Senado votou o tema em junho do ano passado, que foi apreciado também pela Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso.

O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Eduardo Svartman diz que houve um progressivo fechamento dos espaços de interlocução sobre esses documentos ao longo dos últimos anos

Ele afirma, porém, que mesmo em momentos de maior abertura, teve um ponto em que não se avançou: o desenho desses documentos, a seu ver, seguiu partindo majoritariamente da visão das Forças Armadas, sendo possível identificar inclusive quais trechos foram elaborados por cada uma delas.

Entre as consequências disso, aponta Svartman, está a falta de uma estratégia ampla e articulada. “Esses programas não dialogam entre si, eles tampouco estão hierarquizados”, diz.

Para Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, há um déficit de participação da sociedade civil no processo de atualização dessas políticas, mas, diz ele, falta sobretudo um mecanismo institucional que defina organizações ou entidades que devam ser ouvidas –decisão que acaba ficando a cargo do Ministério da Defesa.

“Quem define onde, como, quem e quando essa participação e essa consulta se dará são eles próprios”, diz ele, que aponta organizações que tratam de paz e segurança e entidades ligadas à academia e à indústria de defesa como possíveis atores que poderiam contribuir no debate.

Segundo Vaz, a participação também nas etapas que se dão dentro do Ministério da Defesa é importante, porque, aponta ele, é o momento em que o documento é substantivamente gestado.