SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após uma angustiante espera de pouco mais de um mês, o grupo de moradores da Faixa de Gaza aguardando para ser repatriado ao Brasil foi incluído na lista de pessoas a serem autorizadas a deixar o território comandado pelo grupo terrorista palestino Hamas rumo ao Egito nesta sexta (10).

O grupo foi levado em ônibus para a o posto de fronteira de Rafah, onde está desde o começo da manhã (madrugada no Brasil) sendo processado para sair. Há fila, dados os recentes fechamentos do local controlado pelo Cairo entre a Rafah egípcia e a de Gaza.

A permissão começou a circular no começo da madrugada (noite de quinta, 9, no Brasil) entre os brasileiros. “Que alegria, vamos para casa”, escreveu no Instagram Hasan Rabee, que estava em Khan Yunis e não pôde levar sua mãe e duas irmãs, palestinas. “Espero que essa segunda lista de familiares saia logo.”

A lista inicial não incluía a avó de uma das brasileiras que havia sido registrada pelo Itamaraty, Shahed al-Banna, mas isso foi a resolvido, segundo diplomatas.

O Itamaraty, que havia sido alertado por Israel de que a autorização viria, se mobilizou já na quinta, enviando diplomatas no Egito para receber o grupo, além de ter o avião da Presidência que fará o resgate autorizado a ir do Cairo para Al Arish, aeroporto a 50 km de Gaza.

As 34 pessoas foram deslocadas a partir das 6h30 (1h30 em Brasília). Elas foram ao posto de Rafah, no sul do território sob ataque intenso de Israel na guerra declarada por Tel Aviv após o Hamas promover a maior ação terrorista da história do Estado judeu, no dia 7 passado.

Como já ocorreu antes, há o risco de fechamento da fronteira e outros entraves, mas o problema por ora era mesmo a fila: ambulâncias com palestinos feridos graves e outros estrangeiros já autorizados têm prioridade. Das 34 pessoas, 24 são brasileiras natas, 7 palestinas em processo de imigração e 3, parentes próximos deste último grupo. Ao todo, são 18 crianças, 10 mulheres e 6 homens.

O grupo será recebido por uma equipe do Itamaraty do outro lado da fronteira. Um acordo mediado pelo Qatar e pelos EUA na quarta retrasada (1º) permitiu a primeira saída de moradores de Gaza desde o início da guerra, com prioridade para feridos graves em bombardeios israelenses, que deverão depois voltar ao território, e estrangeiros.

Os brasileiros não estavam nas seis primeiras levas de autorizados a sair, apesar de o país estar em negociação com Israel e Egito desde o começo da crise e ter passado o nome dos interessados há mais de três semanas.

Para piorar, os egípcios suspenderam a emissão de autorizações e fecharam a fronteira do sábado (4) para o domingo (5), devido ao ataque a ambulâncias com civis gravemente feridos rumo ao país por parte de Israel na sexta (3). Após a mediação da ONU e do Crescente Vermelho, a fronteira foi reaberta nesta segunda (6), mas voltou a ser fechada na quarta (8) devido à tentativa do Hamas de usá-las.

Na quinta (9), ela foi reaberta, mas sem novas listas. Com a nova listagem, que inclui vários países que não haviam sido beneficiados, como Rússia, China, Polônia e Dinamarca, ao todo cerca de 4.000 pessoas de 33 nações já receberam a permissão.

Enquanto isso, a tensão política entre Brasil e Israel crescia: políticos ligados ao governo Lula (PT) criticavam Tel Aviv por um suposto boicote aos refugiados brasileiros, devido à condução dos trabalhos do Conselho de Segurança da ONU pelo país em outubro.

Se o PT é historicamente ligado à causa palestina, os fatos desautorizavam as teorias conspiratórias. Americanos, com o maior contingente divulgado em Gaza (1.200 de 7.500 elegíveis), só foram favorecidos na segunda leva, enquanto a inimiga de Israel Indonésia já estava com cidadãos na primeira.

Havia outros focos de tensão: o embaixador israelense encontrou-se com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Ministério da Justiça queixou-se de ingerência de Israel na ação que prendeu acusados de preparar um atentado do Hezbollah libanês no Brasil.

No intrincado arranjo de permissão, todos deveriam ser aprovados pelo Egito, por Israel, pelos EUA e pelo emirado do Qatar, mediando junto ao Hamas. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, falou com seu homólogo egípcio na semana passada. Com o israelense, Eli Cohen, foram quatro telefonemas.

No mais recente, na tarde da quinta, Cohen prometeu a saída nesta sexta. Ele disse que a previsão que havia dado anteriormente, para liberação na quarta, foi atrapalhada pelo abre-e-fecha de Rafah.

O grupo agora irá receber atenção da equipe médica enviada pelo governo brasileiro ao Egito e, na sequência, será repatriada. O VC-2, versão em uso pela Presidência do Embraer-190, sairá de Al Arish rumo a Brasília, com ao menos três escalas (Roma, Las Palmas e Recife). A esse grupo somam-se os 1.410 brasileiros repatriados de Israel pela Força Aérea Brasileira, que também deu carona a 3 bolivianos, e 32 brasileiros retirados da Cisjordânia por meio da Jordânia.

GRUPO ESPERAVA HAVIA UM MÊS

A saída dos brasileiros de Gaza irá encerrar uma epopeia dramática. O grupo todo flutuou em torno de 30 pessoas desde o começo da guerra, com algumas desistências e retornos. Ele foi formado logo após o início do conflito pelo embaixador brasileiro na Cisjordânia, Alessandro Candeas, em coordenação com seu colega em Tel Aviv, Frederico Meyer, e com uma rede de contatos no território palestino.

Em princípio, o Itamaraty conseguiu que parte do grupo fosse concentrado numa escola católica na zona sul da capital homônima da faixa. O local, que já havia sido bombardeado em 2021 por Israel, teve as coordenadas informadas ao governo em Tel Aviv a fim de evitar um novo ataque.

Mas a situação ficou tensa, com bombardeios cada vez mais frequentes na região. Quando Israel determinou a saída de civis de quase metade do território de Gaza, a senha foi dada: seria preciso retirar os brasileiros de lá.

Nesse momento começaram a emergir os vídeos de personagens que marcaram a jornada, como a estudante Shahed, de 18 anos. Ela alternava apelos por ajuda a relatos do cotidiano dos refugiados, dando um rosto reconhecível ao drama em curso.

Candeas montou uma operação arriscada, alugando um ônibus para levar o grupo para o sul da Faixa de Gaza, teoricamente mais a salvo de ataques. Após um vaivém tenso, com direito a embarque e desembarque do veículo, o Itamaraty conseguiu distribuir as pessoas.

Ao fim, 16 pessoas estavam em Khan Yunis, cidade a 10 km de Rafah, em quatro apartamentos de famílias brasileiras. Outras 18 foram para duas casas alugadas pela diplomacia na cidade que faz a fronteira com o Egito.

A tensão, contudo, não cessou. Israel seguiu com bombardeios enquanto preparava sua ação terrestre contra Gaza, e não poupou as áreas fora da zona de exclusão. Novamente, o Itamaraty informou endereços, mas a segurança era hipotética. Outro refugiado que pontificou vídeos que viralizaram, o comerciante Rabee, 30, chegou a filmar um deles logo após o míssil cair perto de sua casa em Khan Yunis.

Ele viria a conversar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por vídeo, dias depois. Em postagens posteriores, a última na quinta, ele descrevia as dificuldades e se queixava, ora do governo, ora de Israel, a quem atribuía o atraso na saída.

CONDIÇÕES SE DETERIORAVAM EM GAZA

As condições em Gaza foram se deteriorando, com pouco acesso a água, alimentos e gás. Como vídeos de Shahed mostraram, o recurso à lenha foi essencial para cozinhar, e carroças com burros foram utilizadas para percorrer os mercados da região.

Neles, os preços haviam até triplicado. “Tudo ficou muito caro”, disse Candeas, que manteve um fluxo de dinheiro para as contas das famílias, que não tinham dificuldade em achar suprimentos, mas não falta de recursos. A operação ainda não teve seu custo calculado.

Com o imbróglio envolvendo o Egito e o vaivém de abertura da fronteira, o desespero cresceu. Candeas relatou à revista Piauí rezar todos os dias no Santo Sepulcro, em Jerusalém, pela solução do caso. Ao fim, a boa notícia veio nesta quinta. A indicação do chanceler Cohen foi adiantada pela CNN Brasil, e confirmada depois pelo Itamaraty.

Foi um calvário diplomático para o Brasil. Além das gestões de Vieira e do trabalho de seus embaixadores em Ramallah, Tel Aviv e Cairo, Lula chegou a falar com os líderes regionais, sem sucesso imediato.

EGITO NÃO QUER NOVO ÊXODO

Um problema central na questão é a posição delicada do Egito. A ditadura do general Abdel Fattah al-Sisi já disse não querer um influxo de refugiados em massa de Gaza, que tem 2,3 milhões de habitantes. O motivo é duplo.

Primeiro, a realidade de que um êxodo dificilmente teria o caminho de volta aberto, gerando mais um deslocamento de população na história do conflito árabe-israelense, o que politicamente enfraqueceria Sisi.

Segundo, tão importante quanto, o fato de que o Egito já tem dificuldades para apoiar os 290 mil refugiados de outras guerras que lá estão, quanto mais assumir um contingente tão grande em uma área inóspita como a península do Sinai. Subjacente a esses dois fatores, há o temor de infiltração terrorista numa região em que ataques são endêmicos.