A Provence, no sul da França, desafia convenções alimentares ocidentais aceitas como dogmas há alguns milhares de anos
Marcos Nogueira
Eu, justo eu, num cenário que poderia estar num flyer da L’Occitane. Um quarto de hotel rural na Provence, sul da França, com móveis pseudo-rústicos, banheira no meio do ambiente e cheiro de lavanda penetrando os poros até impregnar o cérebro.
São os pequenos privilégios de ser jornalista especializado em assuntos supérfluos.
Numa pequena mesa, havia alguns presentes para mim. Presentes do melhor tipo: de comer. Uns biscoitos de mel, umas torradinhas de amêndoas com alho e uma pasta preta de azeitonas.
A Provence, no sul da França, é famosa por seus olivais. Produção pequena, artesanal, de alta qualidade.
Meu francês basta para entender rótulos, mas a visão e a atenção estão bem precárias. O pote de azeitonas dizia “confit’olive”, pois bem, conserva de azeitona.
Peguei a torrada de alho e mandei bala.
O bagulho de azeitona era doce. Não estivesse lá o alho, talvez fosse legal.
Voltei para o pote e, agora com a atenção de que sou deficitário, examinei a etiqueta com os olhos apertados para ler as letras menores.
O segundo ingrediente da pasta era sucre –açúcar.
Atravessei a estrada e fui para a vila de Lourmarin, outro espaço cênico com americanos ricos flanando por entre as vielas. Numa pracinha, a sorveteria Ravi, a melhor das três ou quatro existentes.
Checo os sabores e lá está: azeite com pinoli e azeitonas pretas confeitadas. Por curiosidade pessoal e senso de dever, peço para provar o sorvete.
“Interessante” é uma boa palavra para descrevê-lo. Mesma palavra empregada para adjetivar potenciais parceiros sexuais que não empolgam o bastante para a atracação física. Uma prova era suficiente. Por ora.
Quem nunca pegou –por curiosidade, falta de opção, simpatia ou, vá lá, interesse– alguém meramente interessante?
Num vilarejo do tamanho de uma azeitona, acabei me atracando mais tarde com o tal sorvete. Era uma das sobremesas no restaurante do hotel Le Moulin, no centrinho da vila. Comi tudo e gostei, no calor da novidade.
Quase me apaixonei quando, num jantar fabuloso no La Bastide, no topo do Luberon, fiquei diante de tal sobremesa: sorvete de azeitona preta com texturas de chocolate e azeitona pretas açucaradas. Esquisito no sentido do português brasileiro e no de todas as outras línguas –uma iguaria.
No dia seguinte, acordei com alguma ressaca moral.
Parece que a Provence queria me empurrar a azeitona doce a todo custo.
Óbvio que faz sentido estranharmos doces feitos com azeitonas. Toda a linha histórica que nos trouxe até aqui –dos portugueses aos gregos– coloca a azeitona como um alimento de sal.
Ocorre que a azeitona não é naturalmente salgada.
É amarga. Não, isso é muito pouco. A azeitona fresca é intragável de tão adstringente. Precisa de um tratamento químico para se tornar palatável.
E o tratamento que os caras do Mediterrâneo antigo tinham era sal, facilmente extraído do mar ou da terra. Não existia açúcar, mel era raro e caro (como ainda é). Doce era precioso, azeitona era banal. Salgada, portanto.
Na culinária, muito do que é doce ou salgado é pura convenção. Uma construção social, para usar o lingo vigente.
O Brasil tem goiabada e bananada porque a terra favorece as goiabeiras, a bananeiras e os canaviais. Se oliveira desse como dão as jabuticabeiras, teríamos azeitonada. Doce como a francesa.
Brasileiros estranham que japoneses comam doces de arroz e de feijão; os imigrantes japoneses no Brasil ficaram horrorizados com o arroz e feijão salgados.
É uma carga cultural difícil de se livrar.
Por mais que a Provence tente nos convencer de que doce de azeitona é o máximo, está lá um obstáculo cultural de alguns milhares de anos. Quem sabe, na próxima encarnação eu o vença.