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PATRÍCIA CAMPOS MELLO

KRAMATORSK, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – Kramatorsk, um dos principais centros industriais da região de Donetsk, no leste da Ucrânia, hoje é uma cidade em espera. A pouco mais de 35 quilômetros da frente de batalha com a Rússia, metade de seus 150 mil habitantes se foram desde o início da guerra que já dura 15 meses.

Após algumas fábricas de máquinas serem alvejadas por mísseis russos, todas as indústrias fecharam as portas. Sobraram alguns poucos cafés e supermercados abertos, frequentados por moradores esparsos e centenas de soldados que se preparam para lutar em Bakhmut, epicentro da batalha mais sangrenta do conflito do Leste Europeu, e arredores.

Não se veem carros ou pessoas nas ruas de Kramatorsk, e apenas o som de passarinhos e explosões distantes interrompem o silêncio.

Mas na loja de artigos militares que foi aberta na frente do supermercado em outubro do ano passado, o movimento é intenso. O estabelecimento, lotado de soldados, vende roupas militares, coturnos, mochilas, acessórios para armamentos, óculos de visão noturna, granadas de treino e lembrancinhas como os isqueiros em formato de bala (por 200 hrivnias ucranianas, pouco mais de R$ 25).

Aqui e ali, veem-se edifícios destruídos ou danificados. Muitas vezes, os russos atacam com sistemas soviéticos S-300, que foram criados para defesa antiaérea mas são usados como mísseis para atingir alvos no terreno e têm baixa precisão.

Depois que a região de Donetsk foi reivindicada por separatistas pró-Moscou em 2014, Kramatorsk virou o centro administrativo da metade não ocupada. A cidade também foi alvo de um dos ataques mais trágicos da guerra —em 8 abril de 2022, um ataque de mísseis russos atingiu a estação de trem lotada com 4.000 pessoas que tentavam fugir da cidade. Morreram 59 pessoas, entre elas 7 crianças, e 100 ficaram feridos.

Segundo relatório da ONG Human Rights Watch, a Rússia teria usado contra civis um míssil balístico equipado com munição de fragmentação. Trata-se de um tipo de armamento que, ao explodir, libera várias outras bombas menores, o que aumenta a letalidade —por isso, banido por convenções internacionais.

Os russos declararam no mês passado ter conquistado Bakhmut, após 9 meses no combate apelidado de “moedor de carne”, mas o governo ucraniano diz que suas forças ainda controlam partes da cidade.

“Foi a batalha mais difícil de todas. Era como o cerco de Stalingrado descrito nos livros”, diz o soldado Illia Vlasiuk, 33, que combateu em Bakhmut até meados de maio. Ele morava em Kiev quando começou a guerra, em 24 de fevereiro de 2022. A data marca o início da invasão em grande escala, uma vez que parte dos ucranianos considera que a guerra começou em 2014, quando a Rússia começou a anexar territórios na Ucrânia como a Crimeia.

“Eu tinha duas opções: fugir da Ucrânia ou me alistar, e não tive nem um minuto de dúvida”, conta Vlasiuk, que trabalhava como engenheiro médico e sindicalista. O agora soldado largou seu emprego em março de 2022 e está combatendo desde então. Não tem previsão de quando vai poder voltar para casa. “Minha vida está congelada. Não consigo fazer nenhum plano para o futuro”, diz.

O governo ucraniano afirma que suas forças têm cerca de um milhão de combatentes, sendo que dois terços seriam civis que se alistaram desde o ano passado. Não existe um prazo para os combatentes servirem, e o governo ucraniano resiste em liberá-los porque isso demandaria treinamento de novos recrutas. “É difícil perder a liberdade”, diz Vlasiuk, que, da última vez ficou 17 dias seguidos em Bakhmut sem descansar nem tomar banho. Os combatentes têm direito a 10 dias de folga por ano.

A vida de Natalia Borisovska, 53, também está congelada. Quando a Folha chegou ao portão de sua casa, no vilarejo de Stari Saltiv, algo explodiu no céu. O barulho era muito alto, e a explosão deixou um rastro de fumaça. Um míssil russo acabara de ser interceptado pelas defesas antiaéreas. “Fiquei em pânico até perceber que era a defesa aérea, e não um míssil”, contou Borisovska, tremendo.

Na verdade, a casa onde ela morava havia 30 anos deixou de existir em maio do ano passado, quando foi atingida por uma bomba russa. Uma explosão destruiu a fachada, que pegou fogo e fez o teto desmoronar. Desde então, Borisovska divide seu tempo entre estadias no apartamento de parentes em Kharkiv e em um motorhome emprestado por amigos, enquanto reconstrói, aos poucos, o que sobrou de sua casa.

Acabou de ganhar uma casa provisória da Cruz Vermelha e recebe uma pensão do governo para pessoas que ficaram sem teto na guerra —são 2000 hrivnias por mês (cerca de R$ 270). Ela perdeu o emprego em uma fábrica de roupas após a invasão e agora lava pratos em um restaurante. Juntando sua renda com a do marido, que é motorista, vai demorar muito para reerguerem sua casa. “Ainda estão atacando a gente, e não dá para saber o que vai acontecer”, diz. Eles moram a 20 quilômetros da fronteira com a Rússia.

O arquiteto e historiador Maksim Rosenfeld acha que não dá para esperar a guerra acabar. O ucraniano colabora com a Fundação Norman Foster para promover a reconstrução da cidade. Uma das ideias para consertar edifícios como a sede do governo regional de Kharkiv, que foi muito danificado por um ataque de mísseis, é seguir o que Foster fez no Reichstag alemão, preservando a fachada e modernizando o interior.

Em Saltivka do Norte, bairro planejado da era soviética onde viviam 500 mil pessoas antes da guerra, a destruição está por todos os lados. Alguns moradores já começaram a fazer reparos, tapando janelas com tábuas de madeira ou reformando, mas a maioria ainda não voltou de outras regiões ou do refúgio.

“Mesmo assim estamos limpando todo o terreno, tirando destroços”, diz Rosenfeld. “Até a sensação e o barulho de pisar em vidros quebrados nos causa dor. Por isso, estamos limpando”.

Vários prédios têm, nas fachadas, a palavra “liudi” pichada —significa “gente” em russo e é, na prática, um pedido para forças russas não bombardearem nem atirarem nos imóveis marcados. Parte dos edifícios é chamada pelos moradores de “casa da Barbie” —sem o elemento lúdico, por óbvio; são imóveis com a fachada desmoronada em que se vê o interior dos apartamentos.

No edifício Metrobudivnikiv 8, uma poltrona vermelha resiste às intempéries e se equilibra na beirada de uma sala de estar que desmoronou. “Faz um ano que essa poltrona está aí, é um símbolo da resistência”, diz Rosenfeld. Mas, também, um sinal de tudo o que falta reconstruir.

O jardim de infância de Saltivka, onde estudavam 300 crianças de 2 a 7 anos, está parcialmente destruído e completamente vazio. Resistiu aos mísseis, porém, o letreiro acima da porta: “O futuro feliz da Ucrânia — nós ensinamos e educamos juntos.”

Natalia é diretora do jardim de infância há 33 anos, desde que ele foi aberto. Ela vai até o local quase todos os dias para, aos poucos, retirar destroços e começar, lentamente, a refazer as paredes. Mas não sabe como e quando vão conseguir reconstruir. Indagada sobre o que viu quando chegou à escola depois que os russos desocuparam a cidade em maio do ano passado, seus olhos se enchem de lágrimas. “Não me pergunte isso, por favor. É muito dolorido. Não quero chorar na sua frente.”

Em uma fazenda em Chestakove, na região de Kharkiv, a guerra ainda é muito presente. O gerente Serhi Iatsenko conta que quase 2.000 das 3.000 vacas da fazenda morreram. Algumas foram atingidas por bombas, mísseis, ondas de choque ou destroços; outras pisaram em minas terrestres, e muitas morreram de fome durante a ocupação russa e nos meses que se seguiram.

Iatsenko diz ainda que, quando finalmente conseguiu entrar na fazenda, o cenário era de horror —centenas de vacas mortas, com vermes, espalhadas em meio a destroços, cadáveres de animais no teto, cheiro de putrefação, destruição dos modernos equipamentos e instalações da fazenda. Parte da carnificina ainda está lá —cadáveres de vacas em avançado grau de decomposição foram mantidos.

A fazenda já voltou a funcionar, mas longe da capacidade original. Grande parte dos pastos está cheia de minas e não pode ser usada. Muitas das instalações também estão cheias de explosivos e não puderam ser reconstruídas. Mesmo assim, Iatsenko está reconstruindo o que é possível.

O ucraniano conta que, poucas horas antes de se encontrar com a Folha, viu dois mísseis voando nas proximidades. “Eu não sei quando a guerra vai terminar. Mas não posso esperar.”

A jornalista viajou a convite do Public Interest Journalism Lab