TAIPÉ, TAIWAN (FOLHAPRESS) – “Ele contava que decidiu morar no Brasil e escolheu aquela região porque é muito, muito parecida com Sichuan. Pintava lá e gastou seu dinheiro, quase toda a fortuna, para fazer um parque com estilo chinês e grandes pedras. Muitas árvores também foram plantadas por ele. Dedicava muito amor àquele parque.”
Quem lembra é Shu-Hsiu Hsu, de 97 anos, que conviveu com Chang Dai-chien nos anos 1970 e 1980, quando o pintor conhecido como “Picasso chinês” se mudou para Taiwan, depois de duas décadas no Brasil. Eram ambos originalmente da província de Sichuan, no sudoeste da China, e próximos do Kuomintang do líder Chiang Kai-shek.
Saíram da China em 1949, com a derrota para os comunistas na guerra civil. Chang, um pintor já conhecido, acabou indo morar na Argentina. Shu, soldado de 23 anos, se mudou para Taiwan com o Kuomintang. Ele se aproximou de Chang em 1973, aprendeu com ele e até hoje pinta, três horas por dia, quadros que também lembram Sichuan.
“Quando o senhor Chang pintava, ninguém podia falar. Ele se concentrava muito, pensando em como ficaria. Depois de terminar, era perfeita, não precisava retoque. Ele ensinava que não era só pintar. Tinha que dar vida à obra. Era genial e também era muito trabalhador. Ele se dedicava muito.”
Nesta sexta-feira (20), estreia na Mostra de Cinema de São Paulo o documentário “Da Cor e da Tinta”, sobre Chang, de Weimin Zhang, cineasta chinesa estabelecida nos Estados Unidos, onde leciona na Universidade Estadual de São Francisco. Ela já conhecia a obra, mas sabia pouco da vida de Chang, até achar vestígios dele na Califórnia.
“Claro, eu tinha ouvido sobre Chang desde o ensino médio, mas a história dele desaparecia depois de 1949. Era um mistério até para quem estudava arte. Há mais de dez anos, encontrei na nossa universidade uma filmagem com ele na Califórnia, nos anos 1960. Comecei minha pesquisa e descobri que, na verdade, onde ele ficou mais tempo foi no Brasil.”
Mais precisamente, em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, onde se estabeleceu em 1954 após passar por Hong Kong, Índia e Japão, além da Argentina. Foi lá que ele ergueu seu parque, de onde saía por pouco tempo para exposições na Europa, cada vez mais reconhecido também no Ocidente.
Zhang, a diretora, conversou com filhos de Chang, ouviu muito sobre o pintor em Mogi, mas não sentia encorajada a visitar o parque, que tinha sido alagado e onde não havia mais nada. “Acontece que sou cineasta, então acreditava que devia ter algo que pudesse encontrar”, diz ela, que a partir de 2015 passou a visitar o Brasil ano sim, ano não.
Achou discípulos de Chang, seu médico, mas sobretudo, diz ela, percebeu “que o Brasil está na cabeça de Chang Dai-chien. É a sua utopia. Não há guerra. É paz, é harmonia”.
Quem mostrou o caminho para a diretora no Brasil foi Guilherme Gorgulho, doutorando na Unicamp com pesquisa sobre Chang e produtor do filme. Escritor e jornalista, ele publicou uma reportagem sobre o pintor há 20 anos na Folha. Conta que a maior parte do documentário acabou sendo sobre o país, inclusive com arquivo de televisão da Tupi, porque ele era próximo de Assis Chateaubriand.
“Ele ficou no Brasil até 1973. A gente fala do apagamento da história dele aqui. Os dois únicos quadros que achei em museus, de Olinda e Porto Alegre, estavam escondidos, sem autoria conhecida, pegando poeira. Um deles vale US$ 800 mil. Tornaram-se os mais valiosos das duas coleções.”
Não é como no Brasil, mas é preciso procurar para ver as obras de Chang em Taipé. A maior coleção é privada, sem acesso regular. O célebre Museu do Palácio, que Chiang Kai-shek trouxe de Pequim, já fez exposições de sua obra, mas são inconstantes. Uma opção é a galeria Xizhitang, onde Hsiao Chun Chen foi entrevistada sobre o pintor.
O quadro na entrada é de Chang, de 1967. “Ele estava vivendo no Brasil, mas a vista pode ser dos Estados Unidos, porque sempre visitava San Francisco”, diz a galerista.
“Quero enfatizar que esse estilo [de salpicos de tinta] é o que ele desenvolveu no Brasil. Ele tem esse prestígio tão grande hoje por esse estilo. Suas pinturas não são num único estilo, mas hoje é o que os colecionadores preferem, nos leilões. É mais intangível, abstrato.”
Nas últimas duas décadas, Chang surge regularmente entre os artistas com obras mais valiosas na lista anual da Art Price, que soma os trabalhos vendidos em leilões. Em 2016, ficou em primeiro lugar, com “valor mais alto do que Picasso”, diz Hsiao. Segundo ela, Chang escolheu o Brasil, em parte, porque havia poucos chineses e ele podia se concentrar.
“Ele amava muito aquele lugar”, diz ela, sobre o parque em Mogi. “Porque era quieto e o fazia pensar sobre sua velha cidade em Sichuan. Gastou US$ 2 milhões, em 1954, para comprar os 14 hectares e construir o jardim. Havia um lago, tudo construído por ele. Todas as plantas, flores. Infelizmente não tem mais nada. Só água.”
No fim dos anos 1960, quando foi informado pelo governo estadual que a área seria desapropriada para construir uma represa, Chang começou a se mudar para a Califórnia. “Ficou indo e voltando até 1973”, diz Gorgulho. “A propriedade ainda estava do mesmo jeito. Só foi inundada no fim dos anos 1980.”
Ele havia morrido em 1983, em Taipé. Algumas das grandes pedras de Mogi estão agora num jardim que lembra o seu, em um braço do Museu do Palácio no Sul de Taiwan. E o governo chinês está erguendo um outro, em Sichuan.
“Eu ouvi que está acontecendo, mas não visitei”, diz Zhang, a cineasta chinesa. “Entendo por que os chineses queiram reconstruir a fantasia. Mas, para ser sincera, não é a mesma coisa.”
DA COR E DA TINTA
- Quando 20/10, às 20h50, no Reserva Cultural; 21/10, às 18h, no IMS; e 27/10, às 14h, no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca
- Classificação Livre
- Produção Estados Unidos, Brasil e China, 2023
- Direção Weimin Zhang