Comer saudável é escolha? Estudos apontam barreiras para se alimentar bem

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) 

Dados recentes sobre alimentação e saúde da população brasileira revelam duas tendências à primeira vista contraditórias: o aumento do número de pessoas passando fome e o crescimento da obesidade nos estratos com menor renda.

Segundo especialistas, porém, os dois fenômenos estão interligados. Fatores como preço, baixa oferta de alimentos frescos nas periferias e falta de tempo para o preparo de refeições vêm empurrando famílias de baixa renda a trocar o arroz com feijão, carne e salada por itens industrializados mais acessíveis, mas menos nutritivos e com excesso de gordura, sódio e açúcar.

Apesar de obesidade e doenças crônicas como diabetes e hipertensão terem origem em múltiplos fatores, do sedentarismo à predisposição genética, diversos estudos apontam a correlação entre essas condições de saúde e a alimentação de má qualidade.

“Insegurança alimentar é uma restrição não só de quantidade, mas de qualidade”, afirma Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Canella publicou, em agosto deste ano, os resultados de um estudo que analisou a composição de quase 10 mil produtos em supermercados de São Paulo e Salvador.

Ela se baseou na classificação Nova, adotada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, que divide os alimentos entre in natura (como frutas e verduras), minimamente processados (como óleo e açúcar), processados (como conservas e geleias) e ultraprocessados (como salgadinhos, refrigerantes e chocolates).

A conclusão foi que 97,1% dos ultraprocessados tinham sódio, gordura ou açúcar em excesso e 82,1% tinham ao menos um aditivo cosmético —aqueles usados para melhorar aparência, forma ou odor, e não para garantir segurança sanitária.

Canella ressalta que nem todo alimento industrializado é ultraprocessado. “O ultraprocessado é uma formulação industrial que utiliza poucos ingredientes de uso doméstico, que a gente conhece como comida”, afirma.

A Nova é criticada por associações de indústrias alimentícias, que defendem que a qualidade de um alimento é determinada por sua composição nutricional, e não pelo grau de processamento. Para Canella, porém, a alta quantidade de gordura, sódio e açúcar nos ultraprocessados, encontrada em sua pesquisa, comprova a validade de classificar os alimentos não apenas por seus nutrientes.

PÃES, BISCOITOS E REFRIGERANTES

Um levantamento da empresa VR, divulgado neste 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação, traz uma pista sobre os hábitos de consumo dos trabalhadores brasileiros –ao menos daqueles pertencentes à classe C, principal perfil desses beneficiários.

A análise de 300 mil notas fiscais cadastradas no app da empresa nos últimos 12 meses mostrou que pães, biscoitos e refrigerantes foram os três tipos de alimentos mais comprados, seguidos por leite UHT, chocolate e salgadinhos.

Segundo a última Pesquisa e Orçamentos Familiares, de 2017-2018, os ultraprocessados representavam 19,7% das calorias ingeridas pelos brasileiros. A comparação com anos anteriores mostrou que o consumo cresceu mais entre negros, indígenas e famílias de baixa renda. Enquanto isso, outras pesquisas detectaram uma queda no consumo de alimentos tradicionais da dieta do brasileiro, como arroz e feijão.

Pesquisadores vêm detectando esse fenômeno inclusive em áreas rurais. Uma delas é Gisela Solymos, cofundadora do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), que atualmente desenvolve um projeto em um pequeno município da Zona da Mata de Alagoas.

Segundo dados preliminares, das 500 famílias atendidas, todas de baixa renda, 90% têm algum grau de insegurança alimentar, sendo que 22% passam fome. A taxa de desnutrição entre crianças menores de dois anos é de 12% e a de anemia, de 40%.

Mas o que chamou a atenção de Solymos foi outro extremo dos distúrbios alimentares: 62% dos adultos e 22% das crianças de 2 a 6 anos estão com excesso de peso.

“Estamos vendo a coexistência de subnutrição e obesidade na mesma criança”, diz. “E isso em uma região rural, regada por rios, onde alimentos frescos são potencialmente acessíveis. Mas eles não estão sendo tão valorizados.”

DESERTOS NA CIDADE

Uma das explicações mais óbvias para as mudanças na alimentação dos brasileiros é o custo, como mostrou um relatório de 2021 da ONG ACT Promoção da Saúde. A análise da evolução de preços de diferentes itens mostrou que, desde 2006, os alimentos mais saudáveis encareceram mais do que os ultraprocessados.

Estudos também apontam que o ambiente onde a pessoa vive tem impacto em suas escolhas alimentares. Por essa lógica, áreas com pouca oferta de alimentos frescos, geralmente localizadas nas periferias das cidades, são chamadas de “desertos alimentares”.

Mais recentemente, surgiu o conceito de “pântanos alimentares”, que qualifica regiões onde predomina a oferta de produtos altamente calóricos e com poucos nutrientes.

“Em geral, no deserto alimentar há escassez de pontos de venda. No pântano, não. Eles se espalham por toda a cidade, geralmente em áreas de maior densidade populacional”, diz a nutricionista Paula Martins, professora da Universidade Federal de São Paulo. Nos dois casos, os moradores precisam se locomover para outras regiões para obter alimentos saudáveis.

Martins, que estuda esse tema desde 2007, afirma que o problema se perpetua graças a um ciclo vicioso. “A falta de acesso a produtos in natura perto de casa vai moldando seu hábito alimentar. Se as pessoas de determinado território não têm o hábito de comer frutas e verduras, nenhum comércio que venda esses alimentos sobrevive”, explica.

Para a pesquisadora, o maior problema dos ultraprocessados não é o teor de açúcar ou gordura de forma isolada, mas um conjunto de características que estimulam o consumo exagerado —dos ingredientes da formulação ao design da embalagem.

“São alimentos com uma combinação de açúcar, sal e gordura calculada para estimular o sobreconsumo, que ativam os mecanismos cerebrais de recompensa de uma forma que dificulta o controle. É injusto pedir às pessoas que comam com parcimônia, porque eles são feitos para não serem consumidos com parcimônia”, defende.

Segundo um artigo publicado neste mês no British Medical Journal, o vício em certos alimentos não é um diagnóstico médico, mas o número de pesquisas sobre o tema vem crescendo rapidamente. Nesses casos, utiliza-se uma escala da Universidade de Yale (EUA), que se baseia nos mesmos critérios de diagnóstico da adição por outras substâncias. O texto cita ainda que uma revisão de 281 estudos estimou a prevalência do “vício por comida” em 14% para adultos e 12% para crianças.

A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) contesta essas afirmações e diz que não há evidências de que um alimento, ingrediente ou aditivo alimentar específico cause dependência baseada em substâncias.

“A teoria da dependência de açúcar foi sugerida traçando paralelos com outros comportamentos de dependência, mas a pesquisa científica nunca encontrou qualquer indicador comportamental ou neurobiológico convincente que indique vício em açúcar”, declarou a entidade, em nota.

A Abia também diz que “todo alimento produzido com qualidade e segurança pode fazer parte de uma dieta equilibrada e saudável” e não reconhece a classificação Nova, por considerar que traz “uma descrição tão ampla e pouco objetiva que é absolutamente incompreensível, tanto para a população em geral quanto para cientistas e pesquisadores”.

Segundo a associação, todas as preparações —sejam elas caseiras, artesanais ou industrializadas— podem ter alta ou baixa densidade de nutrientes, muitas ou poucas calorias, a depender dos ingredientes utilizados e da quantidade consumida. “Para os pratos preparados em casa, é preciso ter atenção às quantidades de sal, açúcar e gordura utilizadas. No caso dos alimentos industrializados vale a mesma regra, e eles oferecem um aliado importante que é a informação nutricional contida no rótulo.”

‘PERIFERIA SABE O QUE É COMER BEM’

Para o chef Edson Leite, fundador da empresa social Gastronomia Periférica, bairros pobres das grandes cidades têm um ambiente hostil que limita as escolhas, inclusive alimentares, e a solução passa por políticas públicas abrangentes.

“É um mito achar que a periferia não sabe o que é comer bem. Mas como vou dizer para uma mãe periférica que não pode comprar macarrão instantâneo ou nuggets se o saco de feijão custa mais caro? Se ela gasta duas horas para ir e voltar do trabalho, quando sobra tempo para cozinhar com qualidade?”, questiona.

Leite, que utiliza em seus restaurantes-escola apenas alimentos orgânicos plantados na periferia, aponta a desigualdade no acesso a frutas e verduras sem agrotóxicos.

“Quem planta orgânicos não senta na mesa para comer orgânicos. Quem consome orgânicos é quem mora em Moema, Perdizes, Itaim Bibi”, afirma, listando bairros ricos de São Paulo.

O problema, afirma, é que as famílias de menor renda pagam o preço da má qualidade alimentar com o adoecimento. “Quanto a gente não vai economizar com remédios se plantar nossa comida ou consumir dos nossos vizinhos? Temos que trocar essas ideias com quem está na periferia, porque quem está fora dela já sabe disso há muito tempo.”

A causa ‘Fome de quê? Soluções que inspiram’ conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.