SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um príncipe veio ao mundo há 80 anos graças à imaginação de um francês. O outro é bem mais antigo, passou a ser conhecido em meados do século 16 como resultado das reflexões de um italiano.
Confundir o garoto criado pelo romancista e aviador Antoine de Saint-Exupéry em “O Pequeno Príncipe” com o monarca astucioso concebido pelo diplomata e conselheiro político Nicolau Maquiavel em “O Príncipe” durante um dos julgamentos mais aguardados do STF (Supremo Tribunal Federal) neste ano só poderia virar piada e virou.
Na quinta (14), durante a defesa de Thiago de Assis Mathar, um dos réus condenados pelos ataques golpistas de 8 de janeiro, Hery Kattwinkel soltou a pérola: “Como diz ‘O Pequeno Príncipe’, os fins justificam os meios”.
Numa só frase, duas gafes constrangedoras para um advogado ainda mais durante uma fala na mais alta corte do país. O vídeo com esse trecho do julgamento virou febre nas redes sociais, dando origem, claro, a memes.
Para começo de conversa, são dois livros em quase tudo distantes um do outro. Quatro séculos os separam; os autores são de países e formações diferentes; e têm temáticas, estilos e públicos-alvo muito distintos entre si. Aproximam-se apenas no status de clássicos e, por óbvio, na palavra “príncipe” levada aos títulos.
Direcionado ao público infantil, “O Pequeno Príncipe” parte de uma pane em um avião, que cai no deserto do Saara. Ao acordar depois do acidente, o piloto que narra a história encontra um menino, que vive no asteroide B-612. Na conversa entre eles, o garoto se lembra da rosa, sob seus cuidados, e da raposa, sua melhor amiga.
O livro ganhou fama de excessivamente sentimental, muito por conta das recorrentes citações nos discursos das misses. E, claro, das frases que pipocam nas redes sociais.
Em “O Príncipe”, Maquiavel mostra como a sagacidade, a ambição e até outros sentimentos menos nobres devem ser manejados por quem está no comando de um Estado e deseja permanecer nessa condição.
“Maquiavel trata muito bem dos instrumentos para chegar ao poder e para mantê-lo”, disse o filósofo Renato Janine Ribeiro à Folha de S.Paulo por ocasião do lançamento do seu livro “Maquiavel, a Democracia e o Brasil” no ano passado.
O pensador italiano é autor de outras obras relevantes, como “A Arte da Guerra” e “História de Florença”, mas é considerado o pai da ciência política moderna graças, sobretudo, a “O Príncipe”.
Houve ainda outra gafe. Ainda que tivesse acertado o “príncipe”, o advogado teria errado a citação.
O autor florentino nunca escreveu que “os fins justificam os meios”. Em “Discursos”, Maquiavel se aproxima dessa ideia, mas não a enuncia exatamente dessa forma. No capítulo nove do primeiro livro, diz: “Cumpre que, se o fato o acusa, o efeito o escuse”. E segue: “quando o efeito for bom, como o de Rômulo [da história lendária da função de Roma], sempre o escusará”.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, disse a raposa ao pequeno príncipe. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que dizes, aprendeu o advogado Kattwinkel.