VENEZA, ITÁLIA, (FOLHAPRESS) – “Pense em alguns filmes da Argentina ou do Uruguai, como ‘Argentina, 1985’ [de Santiago Mitre]. Esses países foram capazes de pôr os líderes da ditadura na cadeia. Há um pacto de que nunca mais acontecerá de novo. Mas isso não aconteceu no meu país.”

A observação poderia ser de algum brasileiro, lamentando a falta de punição a membros das forças armadas envolvidos nos horrores da ditadura militar. Mas quem fala é o cineasta chileno Pablo Larraín, que apresentou o longa “O Conde” no Festival de Veneza.

“Estamos completando 50 anos do golpe de estado [no Chile], e essas pessoas estão mais vivas do que nunca”, afirma, referindo-se à invasão orquestrada por Augusto Pinochet ao palácio de La Moneda, em Santiago, em setembro de 1973, que culminou na deposição do então presidente Salvador Allende e em sua morte. “Um terço da população do Chile hoje acha que Pinochet foi um grande homem.”

“O Conde” procura acertar contas com Pinochet, tanto ridicularizando-o quanto o tratando como uma pessoa repulsiva. É uma comédia política ácida, em que Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1990, surge como um vampiro de mais de 250 anos.

Em vários momentos históricos, participou de eventos lutando sempre do lado reacionário. Sua morte em 2006 foi, segundo o filme, puro teatro. Ele só está descansando de tanto massacrar os chilenos.

De vez em quando, sai de seu refúgio para sugar mais um pouco –beber o sangue e devorar o coração de moças que encontra em seus voos noturnos, com uma longa capa.

“Vi fotos de Pinochet usando uma capa enorme com outros generais. Ali havia uma forma absurda de combinação de um aspecto de vampiro com um elemento da cultura pop”, diz o diretor.

O veterano Jaime Vadell interpreta o ex-ditador, enquanto Gloria Münchmeyer é sua mulher, Lucía Hiriart, também demonizada pelo longa. Alfredo Castro, ator-fetiche de Larraín, de filmes como “Tony Manero”, de 2008, dá vida a um ex-militar que serve de mordomo. O filme é quase todo em preto e branco e conta com um apurado sarcasmo.

“Escolhi uma sátira porque todas as outras formas de falar sobre Pinochet poderiam criar alguma empatia. E não se pode fazer isso”, diz Larraín, que levou, com Guillermo Calderón, o prêmio de melhor roteiro em Veneza.

O filme é tão virulento com Pinochet e seus familiares que há de irritar os chilenos que nutrem adoração pelo ex-ditador.

“Vão considerar o filme uma ofensa, porque ignora as ‘maravilhas’ que ele fez: eliminar pessoas que eram uma ameaça ou que pensavam diferente. Mas muitos ficaram chocados quando descobriram que ele tinha contas espalhadas pelo exterior. Como é dito no filme, um soldado pode ser chamado de assassino, mas jamais de ladrão.”

Larraín acredita que os crimes e violações de direitos humanos foram sua grande marca, mas não a única. “Ele forçou o país a experimentar um capitalismo selvagem. Além das mortes, Pinochet nos tornou uma sociedade gananciosa.”

Larraín diz que sua obra não tem o poder de revolucionar comportamentos, mas de trazer alguns assuntos à tona. Não se sente frustrado ao ver que, em diversos lugares do mundo, pessoas com um pensamento alinhado ao de Pinochet têm conseguido se eleger.

“Eu me sentiria derrotado se eles se mostrarem mais fortes do que nós e não nos permitissem falar. Quando não te deixam falar algo ou quando tentam obstruir sua memória e sua forma de pensar. Este, sim, é o fracasso definitivo de qualquer forma de arte, o que não é uma realidade”, diz.

O CONDE

Quando: Estreia nesta sexta (15), na Netflix

Classificação: 18 anos

Elenco: Jaime Vadell, Alfredo Castro e Catalina Guerra

Produção: Chile, 2023

Direção: Pablo Larraín