SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Kim Jong-un é um fofo no trato pessoal e sua poderosa irmã, a Princesa Sangrenta, uma “menina bonita e até indefesa”. Mas a boa impressão não se estende ao aparato de segurança que acompanha um dos ditadores mais reclusos do mundo, que controla cada passo da audiência próxima a ele e até desinfeta a cadeira a ser usada pelo líder.
Essas foram algumas das impressões colhidas pelo jornalista Andrei Kolesnikov, enviado especial do jornal Kommersant à rumorosa cúpula entre Kim e o presidente Valdimir Putin, na quarta (13). Em um texto publicado nesta quinta (14), ele contou alguns dos detalhes da cobertura no remoto cosmódromo de Vostótchni, no Extremo Oriente russo.
Ele e outros repórteres russos e norte-coreanos foram alojados em um hotel da Gazprom, a gigante estatal do gás russo, um dia antes da chegada dos líderes. Havia 110 seguranças de Kim presentes também, segundo a conta de Kolesnikov.
O relato, comedido como convém à imprensa russa sob cerco feroz do Kremlin, transparece bom humor. Ele se queixa de como os seguranças norte-coreanos fizeram um rígido cordão de isolamento, o famoso cercadinho das coberturas em Brasília, para repórteres de texto e de imagem.
Quando Kim desceu do trem blindado que o trouxe de Pyongyang, um fotógrafo da agência Tass acabou sendo o mais bem posicionado, de frente para o ditador, que veio em sua direção.
“Se eu fosse o fotojornalista Vladimir Smirnov, daria incondicionalmente meu lugar a um colega da Coreia do Norte, pois para ele é literalmente uma questão de vida ou morte”, escreve Kolesnikov da mesma forma com que jornalistas brasileiros brincavam sobre os russos durante as visitas de Michel Temer e Jair Bolsonaro a Putin, em 2017 e 2022, respectivamente.
“Um disparo [da máquina] hesitante e pronto… Onde está o jornalista [norte coreano]? Ninguém o verá novamente, é claro”, escreveu o russo. Outro fotógrafo chama os repórteres da mídia estatal norte-coreana de “gafanhotos”, por se moverem em bloco atrás de Kim. Kolesnikov observa que isso é natural, já que “as viagens do líder são mais raras do que as de Putin”.
Antes de as delegações se sentarem à mesa, os seguranças norte-coreanos trocam várias vezes a cadeira do ditador, aparentemente incomodados com o conforto dela. Quando um modelo é escolhido, um funcionário com luvas brancas e um produto químico chega e desinfeta o assento supõe-se aqui questões higiênicas extremadas de um líder que criou o mais brutal lockdown do mundo durante a pandemia de Covid-19, que ao fim não evitou a entrada do vírus no país.
Kim, escreve o jornalista, mostrou-se interessado em todas as questões técnicas de foguetes mostrados a ele no cosmódromo. Mas o que lhe chamou a atenção foi a limusine presidencial russa Aurus, de produção local, que provocou um certo deslumbramento. “Certamente ele ganhará uma de presente”, diz Kolesnikov.
Não fica claro quanto tempo de acesso ao “almojanta” final tiveram os jornalistas, mas o russo descreve um clima ameno, com Kim passando pratos a outros comensais e a tal presença graciosa de sua temida irmã, Kim Yo-jong, “chamada no Ocidente de Princesa Sangrenta”, escreve com a devida cautela Kolesnikov. Não há citação aos usuais provadores de comida, que fazem seu trabalho discretamente.
Houve diversos brindes com frases pomposas, uma tradição no Oriente e na Rússia, e o menu trazia especialidades dos anfitriões como pelmeni (bolinhos de massa fina) com caranguejo de Kamtchatka. Além de vinhos do sul russo, bastante potáveis após melhoras produtivas depois que as sanções ocidentais pela anexação da Crimeia em 2014 encareceram o produto estrangeiro.
O Kommerstant é o principal diário econômico da Rússia. Tinha linha editorial bastante independente até 2019, quando jornalistas vistos como incômodos ao Kremlin foram forçados a renunciar, provocando protestos em sua Redação. Com as regras draconianas para a mídia trabalhar após o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro passado, o tom geral é mais pasteurizado veículos não alinhados ao governo fecharam ou mudaram para o exterior.
Ainda assim, o jornal traz aqui e ali vislumbres de bastidores da corte de Putin, embora no caso do artigo de Kolesnikov o foco seja Kim: o presidente russo surge apenas esporadicamente. O novo melhor amigo de Moscou é o foco, até porque ele causa na Rússia tanto estranhamento e curiosidade como causaria no Brasil.
Putin aceitou, na viagem, o convite de Kim para visitar a Coreia do Norte. Subjacente a esse movimento está a cooperação militar. Apesar de haver dúvidas sobre a real capacidade de Pyongyang de suprir munição suficiente para ajudar Moscou em seu esforço de guerra contra Kiev, este é o principal objeto de comentários no Ocidente.
Kim, por sua vez, recebeu promessa pública de ajuda com seu programa espacial lembrando que um foguete que coloca satélite em órbita é quase o mesmo usado para lançar armas nucleares em outro continente.
O norte-coreano segue na Rússia, onde vai visitar a Frota do Pacífico em Vladivostok e a fábrica de caças Sukhoi em Komsomolsk-do-Amur. Nesta quinta, o Conselho de Segurança Nacional da Coreia do Sul, rival existencial de Kim, disse que Rússia e o Norte “pagariam um preço” se negociarem armas, violando o resoluções assinadas por Moscou no Conselho de Segurança da ONU.
Críticas semelhantes foram feitas pela Casa Branca, do lado oposto da Guerra Fria 2.0 que agora tem Kim como ator ainda mais ativo ao lado de Putin e do chinês Xi Jinping. “Os EUA não têm direito de nos dar lições sobre como devemos viver”, rebateu o embaixador russo em Washington, Anatoli Antonov.