SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Saiam! Saiam!”, gritava a multidão no funeral de 10 dos 12 palestinos mortos pelo Exército de Israel em uma incursão a territórios ocupados na Cisjordânia em julho, a maior em 20 anos. Ao contrário do que se presumiria, os gritos não tinham como alvo soldados isralenses, e sim três integrantes da Autoridade Palestina, ao fim expulsos pela horda em fúria.
O episódio é simbólico de uma crise de legitimidade que, de acordo com analistas, assombra o órgão, concebido como uma espécie de governo de transição até o estabelecimento de um Estado palestino.
Mark Tessler, professor de ciência política da Universidade de Michigan e codiretor do projeto Arab Barometer, que conduz pesquisas de opinião pública no Oriente Médio e no norte da África, diz que esse processo talvez tenha alcançado seu ápice este ano às vésperas do marco de três décadas de sua criação, por meio dos Acordos de Paz de Oslo.
Tessler diz que o principal agravante da crise talvez tenha sido a ascensão da coalizão liderada por Binyamin Netanyahu ao poder de Israel no ano passado, a mais à direita da história do país. Segundo o pesquisador, ao aumentar os ataques contra os palestinos, o governo evidenciou a fragilidade da Autoridade Palestina de forma inédita.
Não é como se Tel Aviv não tivesse defendido a expansão de assentamentos israelenses na Cisjordânia ocupada antes, ou promovido incursões militares recorrentes aos territórios. Mas hoje o governo “é muito mais explícito ao negar aos palestinos quaisquer direitos”, acrescenta Tessler. “E a Autoridade Palestina não está em posição de fazer nada a respeito disso.”
Um levantamento do Centro Palestino de Pesquisas em Política e Estudos de Opinião (PSR, na sigla em inglês) traduz o declínio do órgão em números. O relatório indica que 63% dos palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada ou na Faixa de Gaza acreditam que a Autoridade Palestina é “um fardo para o povo”.
Pesquisadores afirmam que essa insatisfação não vem de hoje, tendo início nos anos 2000, quando ficou claro que os planos de criação de um Estado palestino não sairiam do papel. Arlene Clemesha, professora de história árabe da Universidade de São Paulo, diz que alguns intelectuais já anteviam a fragilidade da proposta ainda na época dos Acordos de Oslo que completam 30 anos nesta quarta-feira (13).
Segundo esses críticos, nos tratados Israel repassava aos palestinos a responsabilidade por fornecer uma série de serviços básicos à população dos territórios ocupados, como saúde, educação e moradia, mas não oferecia em retorno a contrapartida mais óbvia: soberania.
De fato, ainda hoje, as atribuições da Autoridade Palestina a tornam mais semelhante a uma administração municipal do que a um país. Ela não tem poder sobre suas fronteiras, sua defesa ou sua política externa, por exemplo, que ainda cabem a Israel. Este ainda manteve controle sobre os espaços aéreo e subterrâneo das áreas ocupadas.
Para Clemesha, a situação se complica pelo fato de Tel Aviv não ter cumprido o princípio de “terra por paz” que guia os acordos, sob o argumento de que a Autoridade Palestina falha continuamente em manter a segurança na região. Enquanto isso, muitos palestinos passaram a acusar o órgão de trabalhar não pelos interesses de sua própria população, mas de Israel, que junto com os Estados Unidos, é responsável por financiar as forças de segurança locais.
A questão da segurança está, desse modo, no centro da crise de legitimidade palestina. Mas não é o único fator que contribui para esse processo, um panorama que inclui ainda o declínio do partido no poder, Fatah, cuja principal plataforma política, a solução de dois Estados, tem se tornado cada vez mais obsoleta, e as acusações de corrupção e incompetência que recaem sobre a sigla e seu chefe, Mahmoud Abbas, que também é o presidente da Autoridade Palestina.
Abbas, aliás, é um problema em si. Aos 87 anos, 17 deles no poder, ele é visto por muitos como um líder inapto que comete gafes públicas com frequência a última delas, amplamente condenada pela comunidade internacional, ocorreu na semana passada, quando o presidente afirmou que Adolf Hitler promoveu o massacre de judeus no Holocausto não por causa de sua religião, mas de seu suposto “papel social”. A taxa de satisfação do líder na pesquisa mais recente do PCR é de 17%, e 80% afirmam que gostariam que ele renunciasse.
Menachem Klein, autor de “Arafat and Abbas: Portraits of Leadership in a State Postponed” (retratos da liderança de um Estado à espera), faz críticas ainda mais duras ao presidente. “Abbas reage de forma agressiva a qualquer oposição, governa por decretos presidenciais, usa a força para suprimir críticas legítimas e não possui nenhuma visão sobre como encerrar a ocupação israelense. Na prática, ele colabora com a anexação da maior parte da Cisjordânia por parte de Israel”, afirma.
O pesquisador, que é professor emérito do departamento de ciências políticas da Universidade Bar-Ilan, em Israel, diz ver como única solução possível para o impasse a convocação de eleições presidenciais e legislativas, que não ocorrem desde 2006. Votações parlamentares deveriam ter acontecido em 2021, após um acordo entre o Fatah e o Hamas grupo extremista islâmico que representa a principal força de oposição palestina, mas foram adiadas indefinidamente por Abbas na ocasião.
Ainda assim, não está claro como eleições podem quebrar o impasse em que a Autoridade Palestina se encontra. “A pessoa que muitos gostariam de ter como líder, que é Marwan Barghouti, está na prisão em Israel”, diz Tessler, referindo-se ao político que, visto como “herdeiro legítimo” de Yasser Arafat, foi condenado à prisão perpétua por terrorismo em 2002. “Até onde sei, não há ninguém que saibamos que poderia vencer, ou dois candidatos com potencial de ir a segundo turno.”