SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A psiquiatra americana Anna Lembke está em uma cruzada contra a ideia de que toda dor deve ser medicada. Ela é professora da escola de medicina da Universidade Stanford e autora de “Nação Dopamina”, publicado no Brasil pelo selo Vestígio e que figura na lista dos mais vendidos há um ano. Seu primeiro livro, “Nação Tarja Preta”, está prestes a ser lançado por aqui.
Lembke escreve a partir das suas experiências clínicas com o tratamento de dependentes químicos. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ela diz como a busca do prazer nos deixa à mercê de comportamentos compulsivos. “Tudo se tornou mais potente, mais acessível, mais abundante e inovador, de tal forma que tudo tem o potencial de se tornar uma droga, seja a comida que comemos, ou os jogos que jogamos, ou o sexo que fazemos.”
Segundo a médica, o Brasil precisa ficar atento ao excesso de prescrições de opioides para evitar uma pandemia nos moldes da americana, onde foi criado um ciclo de dependência e abuso destes medicamentos. De acordo com o Centro para Prevenção e Controle de Doenças do governo americano, 75% das cerca de 107 mil mortes por overdose nos EUA em 2021 envolveram um opioide. “As taxas de prescrição estão aumentando no Brasil, então há alguns sinais iniciais que sugerem que o país deve se preocupar”, alerta.
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Pergunta – A senhora acha que o Brasil corre o risco de entrar em uma epidemia de opioides, como a que ocorre nos EUA atualmente?
Anna Lembke – Isto depende da cultura médica, de questões como: há uma percepção de que os médicos devem ser mais liberais com os opiáceos? Se eles se recusam a prescrever opioides, há uma visão de que estão negando aos doentes com dor o seu direito ao tratamento? Se falam mais sobre a dependência em remédios do que sobre o problema da dor, estão sendo alarmistas?
As taxas de prescrição de opioides estão aumentando no Brasil, então há alguns sinais que sugerem que o país deve se preocupar.
P. – De quem é a responsabilidade pela crise atual?
A. L. – Do lobby das grandes farmacêuticas e da falta de regulamentação em torno da influência delas sobre a prática médica, que nos Estados Unidos é enorme. E também da maneira como as farmacêuticas se infiltraram na educação médica e na literatura científica. Os reguladores têm uma grande responsabilidade, mas muitas vezes também são influenciados pela indústria.
Outra parte importante é a cultura em torno da dor e a forma como vemos a dor nas nossas vidas. Se entendemos que a dor é parte integrante da vida humana ou que ela é um anátema, algo de que temos de nos livrar.
P. – Freud já disse, há um século, que é da nossa natureza fugir da dor e buscar o prazer. O que mudou desde então?
A. L. – Freud contribuiu com a ideia do inconsciente, de que podemos ter percepções, pensamentos e até mesmo ações que estão fora da consciência. Ele afirmou que, se sofrermos um trauma na primeira infância, isso pode contribuir inconscientemente para o desenvolvimento de uma psicopatologia adulta.
Mas, ao longo dos últimos cem anos, isso se transformou na ideia de que qualquer luta, dificuldade ou desafio pode levar a algum tipo de doença mental, o que não era a intenção de Freud.
Continuamos instintivamente a buscar o prazer e evitamos a dor foi isso que nos permitiu sobreviver e prosperar. No entanto, esse projeto de otimização simples não está mais funcionando.
P. – Qual é o problema agora com essa otimização?
A. L. – Nosso mundo está saturado de drogas e comportamentos altamente reforçadores. As drogas tradicionais são mais potentes e acessíveis do que nunca e os opiáceos são um excelente exemplo. A morfina é cerca de dez vezes mais potente do que o ópio. Hoje, temos o fentanil, que é de 50 a 100 vezes mais potente do que a morfina. Tudo se tornou mais potente, mais abundante e inovador, de tal forma que tudo tem potencial de se tornar uma droga, seja a comida que comemos, os jogos que jogamos, o sexo que fazemos.
P. – Qual é sua opinião sobre a discussão sobre a descriminalização da maconha no Brasil?
A. L. – Quando qualquer droga é descriminalizada, ela se torna mais acessível. Com o aumento do acesso, crescem os danos. Vemos isso repetidamente, é algo previsível. Caso a maconha seja descriminalizada, veremos uma mudança na mensagem em torno do assunto, será promovida a ideia de que a Cannabis é segura. Isso deve aumentar o consumo e gerar efeitos nocivos cada vez maiores, sobretudo porque as pessoas fumam formas potentes de Cannabis, com um teor alto de THC.
A Cannabis eleva o risco de psicose e de desenvolver uma perturbação psicótica permanente, como a esquizofrenia. Portanto, a percepção de que não causa dependência, ou que não é prejudicial, não é verdadeira. Ela é viciante.
P. – Vamos falar sobre tecnologia. Como as mídias sociais e os algoritmos contribuem para o vício em internet?
A. L. – Os algoritmos contribuem muito para o vício em internet e tecnologia porque eles aprendem como passamos o nosso tempo online e do que gostamos. Com base nestes dados, eles nos informam sobre outros tipos semelhantes de mídia digital. Além disso, o design em si é feito para que continuemos clicando e deslizando as telas sem fim, as luzes piscantes, as curtidas e as classificações. Quando somos alvos de uma notificação, isso libera um pouco de dopamina em nossa via de recompensa.
A mídia social produz um efeito de contágio e de normalização. Somos criaturas muito sociais e, quando outras pessoas estão fazendo algo considerado socialmente estigmatizado, nos tornamos mais propensos a fazê-lo. Assim, as pessoas também ficam sabendo pela internet sobre comportamentos viciantes e experimentação de drogas.
P. – Como os pais podem criar filhos que saibam lidar com frustrações e navegar em um mundo de excessos e tentações?
A. L. – O mais importante é ter conversas abertas sobre esses problemas e sobre as maneiras pelas quais nós, como pais, também estamos lutando para administrar nosso consumo de mídia digital e de trabalho. O trabalho também se tornou uma droga. Precisamos ter conversas abertas sobre o fato de que esses dispositivos digitais podem ser ferramentas ou drogas muito potentes.
Além disso, a quantidade e a frequência são importantes. Não se trata apenas do que você está fazendo online, mas também da quantidade e da frequência. Até mesmo o email do trabalho pode se tornar viciante se nos deixarmos cair nesse vórtice de rolagem, consumo e resposta intermináveis. As famílias precisam limitar o consumo de telas. Crianças com menos de 12 anos não devem ter seus próprios dispositivos digitais e qualquer tempo no dispositivo deve ser cuidadosamente monitorado. Nenhuma criança deve ficar em um dispositivo mais de duas horas por dia e, certamente, não todos os dias.
‘Nação Tarja Preta’
Autoria: Anna Lembke
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Vestígio
Preço: R$ 64,90 (208 págs.); R$ 45,90 (ebook)
RAIO-X
Anna Lembke, 55
Professora de psiquiatria na escola de medicina da Universidade de Stanford e chefe da Clínica de Medicina de Adicção de Duplo Diagnóstico de Stanford. É autora de “Nação Dopamina” (Vestígio, 2022) e “Nação Tarja Preta” (Vestígio, 2023).