SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Paris não foi uma festa. A filósofa, pintora e ativista feminista Márcia Tiburi, 53, passou uma temporada francesa após deixar o Brasil, no fim de 2018, quando perdeu uma eleição para governadora do Rio de Janeiro pelo PT.
Dizia-se ameaçada por uma direita raivosa, de morte inclusive. Uma “situação muito solitária, muito infeliz, muito desgraçada”, com muito medo e pouco dinheiro pingando na conta, ao menos para o padrão de vida que tinha antes.
Voltou agora num dia simbólico para ela: o mesmo 30 de junho em que o Tribunal Superior Eleitoral declarou inelegível o agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Trouxe na bagagem seu novo romance, “Com os Sapatos Aniquilados, Helena Avança na Neve”.
A trama fala de Helena, uma brasileira que vive em Paris no apartamento de Chloé. O desejo de vingança vai mover a dupla, com um passado de maridos abusadores, pais assassinos e outros homens vis.
O livro chega à Redação da Folha embalado pelo rótulo “thriller feminista nem um pouco conciliador”, dentro de um saco vermelho onde se lê: “O patriarcado está morto!”. Antes ele do que os corpos femininos que Tiburi contou pelo caminho –na vida real, o que a levou a cofundar o coletivo Levante Feminista contra o Feminicídio, e também na arte.
Em quase todas as tragédias gregas, a mulher termina no caixão. As exceções não poupam a imagem fêmea. “Medeia, não precisa nem comentar”, diz. A homicida mítica mata os filhos para se vingar do marido infiel, um infanticídio premeditado.
Ela também já escreveu sobre Diadorim, personagem de Guimarães Rosa que, em “Grande Sertão: Veredas”, se veste de forma masculina. Repara que, na pele de homem, Diadorim vive. Só quando nua, revelada mulher, transita para o fúnebre.
A arte, de certa forma, romantizou a matança por gênero. Tiburi pinça uma sentença de Edgar Allan Poe como exemplo: “A morte de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo”.
A escritora conta que saiu do país porque temeu morrer e teve amparo de uma instituição nos EUA que defende autores perseguidos na terra natal. “Fui chamada pelo cara que estava sentado do lado do Salman Rushdie no dia em que [o autor de ‘Os Versos Satânicos’] foi atacado.” Fala de Henry Reese, cofundador da organização City of Asylum (cidade do asilo).
Passou um tempo ali, entre colegas de Bangladesh, Turquia, China, Mianmar. “O que notei de interessante é que todos os exilados com quem convivi vinham de países cujas democracias foram destruídas.”
Só depois mudou para a França, quando deu aula de filosofia na Universidade Paris 8, “onde Deleuze, Derrida e outros ensinaram”.
Em 2019, Tiburi disse que decidiu partir após sua casa ser invadida no ano anterior. No ano anterior, a autora de “Como Conversar com um Fascista” abandonou um programa de rádio ao descobrir que Kim Kataguiri, do MBL, participaria do debate. “Que as deusas me livrem”, afirmou.
Agora ela diz que quer papo, sim, com o outro lado. “Mas às vezes fica impossível porque eles não querem, né?”
Diz que, mesmo sendo “uma pessoa de esquerda e feminista”, dialoga com um monte de bolsonaristas. Até com o “fascista raiz”, como um jogador de futebol que padecia do “vazio de pensamento” que, diz ela, a filósofa Hannah Arendt via como antessala da banalização do mal. “Era um fanático que só conversava comigo porque tinha algum prazer em se exibir para mim com sua agressividade.”
Não vai dar nome aos bois porque se sente “cansando demais as advogadas”. Ela foi condenada pela Justiça a indenizar Kataguiri, já deputado, por associá-lo ao nazismo –chamou na ocasião “grande parte do Judiciário” de “fascista e machista”.
A direita, sobretudo a bolsonarista, é inimiga declarada. Tiburi vê a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro como “um desfavor à luta das mulheres” e aposta de sua família e de boa parte da retórica do ódio que dominou os últimos anos, projeta. Para ela, “um aqui, outro ali” dessa turma vão continuar se elegendo, mas longe do êxito de cinco anos atrás.
Diz ainda olhar “com muita tranquilidade” o governo Lula, criticado por fatia da esquerda desgostosa com certos gestos, como a inclinação do presidente em nomear homens para postos-chaves do Judiciário. “Espero que não vire condescendência.”
Tiburi responde a uma ideia debatida dentro do movimento feminista e que tem como premissa o privilégio de mulheres brancas. Em “Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todas”, que lançou em 2018, lembra ter falado “que não existe feminismo branco”.
“Veja só por quê: a gente não está falando simplesmente da cor da pele, mas de um marco epistemológico profundo. Então, mesmo que a minha pele seja branca, sigo princípios e avanços do feminismo negro. Num sentido, sou seguidora do feminismo negro.”
Claro que o patriarcado, diz, infecciona todos os poros políticos. “Há anos a gente fala da figura do esquerdomacho. A diferença é que existe homem tentando se desconstruir e machista envergonhado na esquerda, coisa que não encontramos do outro lado. Pega mal para o esquerdomacho ser agressivo e deixar transparecer. Na extrema direita isso é capitalizado.”
Ataques vieram tanto da direita quanto da esquerda após a jornalista Hildegard Angel publicar um texto sobre uma festa recente que celebrou a filósofa.
Entre os convidados, Zélia Duncan, um antiquário, a viúva de Jô Soares, um deputado petista e outros homens com “suas belas mulheres”. O título contemplava o fim do “autoexílio” e “as boas-vindas a Marcia”, apesar de a própria preferir o termo exilada para se referir à sua situação, por achar que não tinha opção de ficar no Brasil.
Publicado no site Brasil 247, o texto descreve como Tiburi estende no chão duas telas encomendadas pelo advogado Walfrido Warde, o anfitrião –ela é formada em artes plásticas. A certa altura uma das pinturas “derruba um copo de vinho, os empregados correm para limpar e secar, uma performance e tanto”, conta Hildegard.
“Como dessert da noite pantagruélica”, continua a narradora, Tiburi revelou que vê fantasmas, inclusive “um Orléans e Bragança, finado morador” de seu apartamento numa avenida de elite do Rio, e que o gasparzinho aristocrata às vezes aparecia de smoking de flanela marrom. “Fiquei imaginando o chiquê.”
Tiburi diz que não leu o relato, mas notou reações agressivas na internet. “Acho que tenho que ler, né? O que posso dizer é que a Hildegard também era homenageada. Duas festas foram juntadas.”
A filósofa confirma que sempre lhe foi normal “ver gente que já morreu” e que, na Europa, quando “não tinha mais nada, mas tinha tempo”, dedicou-se às artes.
Um de seus trabalhos estampou a cabeça decepada de Bolsonaro numa camisa. “Claro, é arte, né? É simbólico, é republicano. É uma liberdade de expressão, digamos assim.”