SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Corinthians disputará a final do Campeonato Brasileiro feminino contra a Ferroviária neste domingo (10), com expectativa de grande público no estádio de Itaquera. Em seguida, começará sua preparação para a Copa Libertadores, que será realizada em outubro, na Colômbia.
Afinal, um time de futebol excursionar pela América do Sul não tem nada de mais. É corriqueiro. Mas e se isso acontecesse em 1941? Com uma equipe composta de mulheres?
Naquele ano, a notícia de que o Primavera Atlético Clube havia recebido convite do empresário argentino Afonso Doce para viajar causou alvoroço na imprensa. Serviu para tornar mais virulenta a campanha de jornais da época contra a prática de futebol por mulheres. Causou prisões, revistas policiais e foi a gota dágua para o decreto que proibiu, entre 1941 e 1979, a modalidade no país.
“Esse episódio de representar o Brasil fora dos limites do nosso território foi uma grande ousadia. Vestir a camisa brasileira fora do país, mesmo no masculino, envolvia racismo, violência e negociações em que os dirigentes esportivos tomavam decisões de retirar jogadores negros, não defendê-los. As mulheres do Primavera eram pobres, simples, e havia a ideia de que elas não poderiam ser responsáveis pelas próprias decisões. Esse convite para viajar foi a gota dágua”, constata Aira Bonfim.
A historiadora é autora do livro “Futebol Feminino no Brasil: Entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”.
Criado em maio de 1940, o Primavera tinha aspectos inéditos. Era time composto apenas de mulheres, não era uma ala feminina de um clube formado por homens. Sua sede, em Pilares, zona norte do Rio de Janeiro, era casa frequentada também por atletas de outras agremiações.
A equipe era dissidência dos melhores nomes de outro time, chamado Brasileiro, como Nicea, Elza, Aída e Sally. Esta era atriz da Companhia Typica Brasileira e aparecia em colunas teatrais.
O Primavera deveria ser um passo decisivo para o crescimento do esporte no Rio. Ajudou, em vez disso, a decretar o fim do futebol feminino por quase 40 anos.
Chegou-se a pensar que poderia ser diferente. Imprensa e autoridades cariocas, no final da década de 1920, elogiaram o aparecimento de partidas entre mulheres. Quase sempre em festivais de futebol e em preliminares de confrontos entre homens. Jornais da época designaram a iniciativa como “sucesso completo”.
Jogadoras começaram a se destacar, e há registros de pretas nesses eventos. Eram times do subúrbio, onde foram descobertas dezenas de clubes que também tinham elencos dos dois gêneros.
Com o passar dos anos, os jogos passaram a se deslocar para o centro do Rio, então capital do país. As críticas começaram a aparecer. Publicações da cidade desqualificaram o futebol feminino. Quando havia elogios, era com termos como “charme”, “graça” e “sensualidade.”
Em 1940, Cassino de Realengo e Brasileiro foram chamados para fazer a preliminar da inauguração do sistema de iluminação do Pacaembu. A edição da Folha da Manhã de 18 de maio daquele ano publicou que “agradou sobremaneira o futebol feminino”, com vitória do Brasileiro por 2 a 0. Esses times receberam convites para atuar em Belo Horizonte, Santos, Magé e Petrópolis.
A campanha ficou mais forte meses depois. A partir de janeiro de 1941, o diário Imparcial publicou que a modalidade era “caso de polícia” e “um antro de perdição”. Seria atividade “incompatível com qualquer mulher”. Começam a aparecer pedidos para que o governo de Getúlio Vargas proibisse a prática.
“A partir do momento em que este futebol feminino carioca começa a sair da cidade, desse ambiente suburbano, passa a causar maior estranhamento, e há dificuldade de aceitação de mulheres como protagonistas do jogo. Isso assusta. A gente percebe que pessoas que nem assistiram a esses jogos, gente que tinha relações mais conservadoras, passam a ter voz na imprensa e na decisão que envolve ambientes políticos”, afirma Aira Bonfim.
O Primavera apareceu dentro de um ambiente que já era hostil.
“O nome do clube é metafórico para pensar neste ambiente de mulheres ocupando espaço público de jogar bola”, diz Bonfim.
O convite para excursionar pela América do Sul foi a gota dágua. Colocou os holofotes sobre o time e, principalmente, sobre a diretora, mentora, massagista e propagadora do futebol feminino, Carlota Alves de Resende, a dona Carlota.
Ela foi presa, acusada de explorar jogadoras nas zonas boêmias do Rio. Segundo a imprensa da época, um dos argumentos que validavam a afirmação era que ela tinha sobrinhas que faziam parte do time e participavam do cenário carioca das artes cênicas.
O Imparcial publicou que as jogadoras eram “criaturas subnutridas, esqueléticas mesmo, desprovidas de beleza estética”. O delegado Lineu Cotta pediu providências imediatas para o fechamento dos clubes femininos de futebol. O ministro da Educação, Gustavo Capanema, designou ao general integralista Newton Cavalcanti a missão de regulamentar os esportes para mulheres. Pouco depois, em setembro de 1941, foi decretada a proibição.
Dona Carlota e o Primavera, com sua ambição de viajar pela América do Sul, passaram a ser vistos como ameaça à ordem vigente. O movimento deslocaria os papéis sociais das mulheres e as faria negligenciar suas obrigações nos lares.
“Quando dona Carlota é presa, desmobiliza o futebol e desarticula o movimento. Começam a aparecer evidências de clubes que proíbem times femininos. Mulheres têm de ir a delegacias explicar por que estavam jogando bola. Ela acaba sendo representante de algo que vai acontecer entre 1941 e 1979, de um país repressor e que não deu oportunidade para a participação de mulheres no esporte”, conclui a historiadora.