SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 2017, em meio à crise política em que o Brasil havia mergulhado, Emanoel Araújo não enxergava espaço para utopias. “Tenho 77 anos. Não tenho mais tempo para elas”, disse o artista plástico, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Havia, porém, um ideal no qual ele ainda acreditava.
“Eu quero fazer exposições que possam mexer com as pessoas. Num país preconceituoso e excludente como esse, um museu afro no Ibirapuera é uma certa utopia”, afirmou o curador e artista plástico, morto em setembro do ano passado.
Essa utopia, no entanto, não existe só no mundo das ideias. Desde 2004, o Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega projeto assinado por Oscar Niemeyer abriga o Museu Afro Brasil, equipamento cultural que se firmou ao longo dos anos como um dos mais relevantes do país.
No dia 30 deste mês, o espaço dará início a uma exposição que reunirá 27 xilogravuras produzidas por Araújo entre os anos de 1960 e 1970, quando ele começou a despontar nas artes plásticas.
Já o MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, abre no dia 19 de outubro a exposição “Mãos: A Mão Afro-Brasileira”, que revisita a mostra realizada pelo curador em 1988 por ocasião do centenário da Lei Áurea.
Serão cerca de 150 obras de nomes como Sidney Amaral, Heitor dos Prazeres e Rosana Paulino. A maior parte dos trabalhos será exposta na galeria Paulo Figueiredo, do MAM. A outra parte vai ser instalada na biblioteca Carolina Maria de Jesus, no Museu Afro Brasil, onde trabalhos de Araújo serão exibidos.
Essas iniciativas reverenciam o legado do artista plástico, um dos nomes mais proeminentes da arte brasileira. Ele foi secretário de Cultura de São Paulo, comandou o Museu de Arte da Bahia e a Pinacoteca paulista. Foi também laureado com prêmios e medalhas ao longo de mais de cinco décadas de carreira.
“A qualidade do trabalho de Emanoel deriva de seu projeto ético e estético”, diz o curador e artista visual Claudinei Roberto da Silva, membro da comissão artística do MAM.
De acordo com ele, o trabalho de Araújo é permeado por temáticas ligadas às populações negras. No entanto, diz o curador, sua arte não abria mão da forma em favor do conceito.
“O aspecto estético está perfeitamente contemplado nas obras. Ele nunca é preterido. Mas o aspecto ético e político também está ali. Tanto um quanto o outro estão a serviço da poesia”, diz o curador. “Em sua complexidade, o trabalho dele sugere que tanto características formais quanto conceituais conseguem conviver num projeto sofisticado.”
A trajetória profissional de Araújo pode ser dividida em duas fases. A primeira começa na década de 1960, período em que ganha notoriedade nas artes plásticas com xilogravuras, ilustrações e cartazes.
“Isso é muito raro. A gente está falando de uma época em que o negro só aparecia como artista folclórico, naïf ou pitoresco”, diz Claudinei.
A partir dos anos 1970, Araújo se volta ao concretismo e incorpora a tridimensionalidade a seu trabalho por meio de grandes esculturas, tais como “Aranha” e “A Roda”. Apesar disso, é possível que sua obra de maior envergadura seja o Museu Afro Brasil. E não é sem motivo.
A instituição abriga um acervo com mais de 8.000 peças, desde itens contemporâneos a produções do século 18. São obras que colocam em primeiro plano a contribuição das populações negras para a identidade nacional, papel muitas vezes relegado ao rodapé dos livros de história.
Um dos destaques do acervo são os artefatos ligados às religiões de matriz africana, como itens litúrgicos, vestimentas e imagens de orixás. Pôr em evidência esses objetos é de certa forma uma decisão disruptiva.
Durante a escravatura e nos primeiros anos da República, essas obras não eram tema de exposição, e sim assunto de polícia. Cultos do candomblé e da umbanda eram criminalizados e reprimidos de forma violenta.
O caráter subversivo do museu também está em seu endereço, situado no parque Ibirapuera uma das regiões mais nobres de São Paulo.
“Muita gente disse que o museu tinha que estar na Bahia. Falavam que lá que era terra de preto, não aqui. Então o fato de ele estar ali é fundamental para mostrar a competência do museu”, disse Araújo, no Roda Viva.
Claudinei ecoa essa avaliação e acrescenta que museus não são espaços anódinos, uma vez que refletem o poder de uma determinada classe ou grupo étnico-racial. Para ilustrar isso, ele usa como exemplo o Museu do Ipiranga, cujo prédio foi construído para ser um monumento à proclamação da Independência.
“Ele surge no rol de uma série de celebrações que procuravam exaltar justamente o poder econômico, político e artístico de São Paulo.” Se o Ipiranga materializou os anseios da elite paulista, o museu criado por Araújo espelha as aspirações da comunidade negra do país.
“O Museu Afro-Brasil é um acontecimento estético fundamental na história recente da arte nacional”, sintetiza Claudinei.
Antes de comandar essa instituição, Araújo havia capitaneado a Pinacoteca de São Paulo por dez anos, período em que fez uma gestão considerada inovadora. Dizia ter encontrado o imóvel decadente em 1992, quando foi nomeado. “Na minha primeira noite lá, o segurança me liga dizendo que a Pinacoteca estava inundada.”
Para restaurar a construção, ele decidiu fazer grandes reformas. Com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, botou o prédio do museu abaixo, integrou seu pátio ao jardim da Luz, contrariou ordem da Prefeitura e removeu uma escada da fachada.
“O trabalho dele na Pinacoteca é até hoje um trabalho de referência na gestão de um museu”, diz Gilberto Alexandre Sobrinho, professor do instituto de artes da Unicamp. O pesquisador explica que Araújo deu dinamismo à instituição, trazendo exposições internacionais que ajudaram a aumentar o número de visitantes.
Em 1995, Araújo trouxe uma mostra de esculturas de Auguste Rodin que atraiu 150 mil pessoas à Pinacoteca em 38 dias. Movimento recorde à época. O artista plástico dizia, porém, que devolver relevância à instituição lhe custou a saúde. Acabou infartando durante o processo.
“O Museu Afro e a Pinacoteca são dois trabalhos dele voltados ao cidadão. São ações públicas de grande alcance e com várias camadas”, avalia Sobrinho.
Em 2005, Araújo teve uma passagem relâmpago pelo poder público como secretário de Cultura da capital paulista. Após cem dias, ele renunciou de forma repentina, tecendo críticas a José Serra, então prefeito da cidade. O estopim da renúncia aconteceu quando o tucano anunciou medidas na área da cultura que o artista plástico desconhecia.
“A minha saída justifica-se por ter sido internado sem nenhuma infraestrutura numa secretaria desprovida de recursos humanos, apagando incêndios deixados pelo meu antecessor, que eu, ingenuamente, desconhecia”, escreveu na carta de demissão, referindo-se a Celso Frateschi, secretário que o antecedeu.
Araújo era tido como alguém de personalidade irascível e reações vulcânicas. Também era uma pessoa contraditória. Defendia pautas progressistas, como a luta contra o racismo, mas ironizava o casamento homoafetivo e se dizia contrário à adoção de filhos por casais do mesmo sexo. “Se queria ser pai, por que não virou hétero, não pegou sua mulher e fez seu filho?”, disse em entrevista à Folha, em 2013.
Em 2017, foi alvo de acusações de assédio sexual por parte de dois ex-funcionários do Museu Afro Brasil, em caso que surgiu nas redes sociais. As postagens foram retiradas do ar por determinação judicial depois que os acusadores foram processados por Araújo.
Segundo o historiador Gabriel Rocha, o artista plástico foi um nome importante para que o mercado se abrisse à diversidade racial.
“Ele promoveu exposições onde artistas negros podiam se destacar”, diz Rocha, usando como exemplo a exposição “A Mão Afro-Brasileira”, a mesma que será homenageada pelo MAM.
Foram incluídas na mostra dos anos 1980 trabalhos de artistas como Rubem Valentim, Aleijadinho e João Timotheo da Costa. “Essa iniciativa foi importante porque lançou as bases do que viria a ser o Museu Afro Brasil”, afirma Rocha, que trabalhou na instituição durante cinco anos.
O historiador considera ser reducionista tratar Araújo como um nome importante para a arte afro-brasileira, uma vez que sua influência pode ser sentida no setor cultural de forma mais ampla. Até porque, diz ele, o artista também tem obras que não abordam diretamente a questão racial.
“O Emanoel nunca se esquivou de abordar assuntos fundamentais para a população negra no Brasil, mas ele se recusou a ficar só em um espaço”, diz o pesquisador. “A gente consegue falar do que a gente quiser. Não apenas sobre negritude, mas inclusive sobre ela.”