RIO DE JANEIRO, RJ (UOL/FOLHAPRESS) – A interdição de São Januário foi o estopim para uma disputa do Vasco e sua torcida com o Poder Judiciário do Rio de Janeiro. Entre argumentos sobre a segurança nos arredores, surgiu uma discussão de elitismo:

Um estádio pode co-existir com uma favela vizinha?

Qual o papel dos moradores de comunidades como a Barreira do Vasco no futebol?

Qual o limite da elitização do futebol?

O QUE ACONTECEU?

Houve confusões do lado de dentro e de fora após a derrota do Vasco para o Goiás. O time cruzmaltino, no dia seguinte, foi punido pelo STJD. A Justiça também acatou um pedido do MPRJ e interditou o estádio.

Um dos documentos utilizados foi um relatório assinado por Marcelo Rubioli, juiz que estava de plantão no dia do jogo. Em um trecho, ele salienta a proximidade do estádio com a comunidade Barreira do Vasco.

“Vê-se que todo o complexo é cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado o que gera clima de insegurança para chegar e sair do estádio”.

Dias depois, a Justiça liberou, mas para jogos sem torcida. Na última semana, um julgamento no TJRJ manteve a proibição e o clube foi ao STJ.

“É como se, mais uma vez, a favela tivesse de ser excluída do mapa. Temos de mostrar que na favela não existe só tristeza. Que possam tirar esse rótulo de que favela é sinônimo de violência e mostrar que tem pessoas de bem. Quem viu que a Barreira leva perigo, que venha nos fazer uma visita. Vão ver que a favela é boa e não oferece perigo aos torcedores”, afirma Vania Rodrigues, presidente da Associação de Moradores da Barreira.

HÁ MAIS CONFLITOS EM SÃO JANUÁRIO?

O Instituto Fogo Cruzado divulgou dados que mostram confrontos nos arredores de São Januário, Maracanã e Nilton Santos, estádios utilizados pelos representantes cariocas na Série A do Brasileiro. O Fogo Cruzado mapeou, entre 1/1 e 31/8 deste ano, as seguintes ocorrências de tiroteios:

– 16 no entorno do Nilton Santos

– 22 nos arredores do Maracanã

– 22 no que diz respeito a São Januário.

Vale ressaltar que, como se considera um raio de 2 km, alguns contabilizados no Maracanã e São Januário coincidem.

FUTEBOL MAIS LONGE DA CAMADA POPULAR?

Raquel Sousa, doutoranda em Ciências Sociais pela UERJ e pesquisadora da área de violência, segurança e justiça no ambiente esportivo, acredita que a interdição de São Januário é mais um episódio de um processo de elitização dos estádios.

“Há um processo de ‘arenização’ e uma iniciativa para mudar a nossa cultura torcedora. Essa tentativa de afastamento das classes populares ocorreu por um longo período de nossa história. No início do século 20 já tinha esse preconceito. Há relatos nos jornais da época com críticas à torcida do Bangu, que era vista como violenta. Sempre houve um olhar à elite, mas houve resistência”, afirma Raquel.

A socióloga cita ainda a presença dos vascaínos nos arredores de São Januário no último domingo (3) para acompanhar o duelo com o Bahia, que foi em Salvador, através de um telão.

“Há uma lógica de transformar o torcedor em mero consumidor, esvaziando toda a carga emocional do futebol. O que se viu em São Januário no domingo foi um ato de resistência, um movimento que percebe ter algo além da punição esportiva. A torcida está lutando para estar presente”, aponta.

O QUE DIZ O VASCO?

O Vasco, em manifestações públicas, inclusive no recente julgamento no TJRJ, ressalta o prejuízo esportivo e financeiro, os impactos econômicos e aponta o que seriam avaliações diferentes em relação a outros clubes que também tiveram problemas como mandantes.

“Essa proibição, embasada em alegações eivadas de preconceitos, que apontam para a localização em área popular, a violência e as dificuldades de acesso como justificativas, é seletiva e discriminatória. Ignora-se, nesse contexto, que outros estádios de clubes da Série A permanecem abertos, mesmo tendo enfrentado recentes e mais gravosos problemas de segurança, inclusive no Rio”, afirma trecho do manifesto divulgado pelo Vasco.

O QUE ALEGA O MPRJ?

O UOL conversou com Rodrigo Terra, promotor do MPRJ que propôs a ação na Justiça. Ele nega que haja um preconceito social e ressalta trâmites abertos contra torcidas de outros clubes.

“Não é elitismo porque tenho a imediata resposta para outro evento que aconteça em qualquer outro estádio. O que existiu foi mais um evento envolvendo torcedores organizados banidos e, neste caso, aconteceu dentro e fora do estádio. Como conseguiram entrar com rojões e sinalizadores? Como tiveram a liberdade de atirar no campo? Como tiveram trânsito livre?”, diz Rodrigo.

O QUE DIZ A PM?

Em nota enviada ao UOL, a PM afirmou que, “de acordo com o público previsto num determinado evento desportivo, a estratégia aplicada pelo comando da Corporação segue atrelada às análises de planejamento”.

O órgão ressaltou ainda que o Bepe “prepara o efetivo para os jogos mediante análise situacional. O efetivo ordinário do Batalhão conta com o apoio das unidades dos bairros onde os jogos acontecem e, nessa região específica, há o estabelecimento da UPP Barreira do Vasco que atua no interior da comunidade que margeia o estádio”.

O QUE DIZ O TJRJ

O UOL procurou o TJRJ, que indicou que “é vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento”.