SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um homem vê uma mulher linda dançando em uma festa dada por sua esposa, na casa onde mora, e se sente atraído. A mulher é Ângela Diniz, interpretada no filme “Ângela” por Ísis Valverde, ambas mineiras que se mudaram para o Rio de Janeiro.
Já o homem é Doca Street, apelido de Raul Fernando do Amaral Street, morto em 2020, aos 86 anos. No longa que chega aos cinemas nesta quinta, dia 7, ele é vivido por Gabriel Braga Nunes.
A dona da casa e da festa é a milionária Adelita Scarpa, prima de Chiquinho Scarpa, que é interpretada pela atriz Carolina Mânica na produção cinematográfica.
E a locação da festa é a casa onde Chiquinho Scarpa nasceu e sempre morou, uma mansão que ocupa um quarteirão inteiro no Jardim Europa, em São Paulo, com 1.500 metros quadrados de área construída e decorada com móveis sofisticados, tapeçarias do século 18 e muitas obras de arte. A casa, aliás, está à venda, por R$ 63 milhões.
“Só de estar naquela casa eu já sabia como devia interpretar a Adelita. Não a conheci, mas saber que ela passou a vida em casas como aquela em que filmamos, com paredes de madeira, painéis de tapeçaria, aquele monte de funcionários, já me trouxe informações de como me portar, como falar, que gestos usar. Seu corpo assume uma postura diferente”, conta Carolina Mânica.
A trama é baseada em fatos bastante conhecidos, apesar de terem acontecido em 1976, 47 anos atrás. Não deve ser um spoiler para ninguém que o final dessa história é a morte de um dos personagens centrais e que o assassino é o outro protagonista.
O primeiro podcast a se tornar um fenômeno de audiência no Brasil, “Praia dos Ossos”, realizado pela Rádio Novelo e lançado em setembro de 2020, contou essa mesma história, com um escopo bem mais amplo, em oito episódios de mais ou menos uma hora cada. Foi ouvido por pelo menos três milhões de pessoas.
O filme tem 104 minutos, ou seja, pouco mais de uma hora e meia. E se concentra nos quatro meses que durou o romance entre Ângela e Doca, desde agosto, quando ele foi expulso de casa por sua mulher e se mudou para Búzios com a amante, até a tragédia do dia 30 de dezembro.
“Comecei esse projeto em 2016, assim que terminaram as filmagens de Elis”, conta o diretor Hugo Prata. “Nunca imaginei que o filme seria lançado na mesma época em que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra”, completa.
Legítima defesa da honra é um termo jurídico que surgiu no Brasil no século 19 e que foi muito usado para livrar da cadeia homens, quase sempre, que matavam ou agrediam mulheres, na maioria das vezes, que cometessem qualquer ato que os desagradasse.
Na legislação estava escrito “calúnia, difamação ou injúria”. Mas ciúme, traição, beber demais numa festa, dançar com outro homem ou até ter uma discussão mais inflamada podiam ser muito rapidamente renomeados como “calúnia, difamação ou injúria”, no caso de o homem em questão optar por encerrar aquela história matando a mulher que lhe feria a honra.
Isso até o último dia 1° de agosto, quando o STF decidiu por unanimidade proibir esse recurso.
“Fazer um filme é como lançar uma flecha, que voa por cinco anos e no dia em que ela cai no chão, precisa fazer sentido”, diz Prata. Foi dele a decisão de centrar a história do filme só no romance do casal protagonista, dispensando até elementos conhecidos da trama, como o fato de os dois usarem cocaína e terem relações com outras pessoas no período em que estavam juntos.
“Esse crime começa no dia em que os dois se conhecem. Acho muito injusto tentar justificar uma morte tão violenta falando do que aconteceu na vida de ambos antes de eles se conhecerem. Descartamos essas teses conscientemente, militamos contra elas”, afirma o diretor.
Não é exatamente essa a impressão de Ísis Valverde, intérprete de Ângela Diniz e mineira como sua personagem.
“Mineiro tem um jeito de ser, né? A gente tem uma coisa saudosista quando sai de Minas e vai para outro canto. É um sentimento que persegue, e que tentei trazer para o filme”, conta a atriz.
“A [roteirista] Duda de Almeida diz que a Ângela era uma mulher desejante. E uma mulher desejante é uma mulher perigosa”, diz a atriz. “Ela fugia de todos os padrões da época e era uma mulher incontrolável, independente financeiramente, desbocada. Ouvi de um amigo dela, nas minhas pesquisas, que, se não fosse o Doca, outro homem a mataria.”
Duda de Almeida, roteirista da série “Sintonia”, da Netflix, conta que Hugo Prata a procurou com a proposta de fazer um filme quase teatral, que se passa quase todo num mesmo cenário, a casa de Búzios, e com os dois personagens centrais em quase todas as cenas.
“A gente tinha um filme que começava como uma história de amor e no final virava uma história de terror. Achei essa ideia muito desafiadora”, diz.
“Eu não tinha muito em que me basear para escrever as cenas que acontecem entre os dois, então precisei imaginar o cotidiano deles, aquela relação que tinha muita manipulação, jogos emocionais e violência.”
Para quem conhece a história, ou a história da história, seja por meio do podcast “Praia dos Ossos” ou pelo livro “Mea Culpa”, escrito por Doca Street em 2006, vai estranhar que o nome do personagem no filme seja Raul, não Doca, como ele era chamado e como ficou conhecido quando a história tomou não só as manchetes dos jornais, mas também deu o pontapé inicial do movimento feminista no Brasil.
O nome dele, de fato, era Raul Fernando do Amaral Street, mas era conhecido como Doca desde pequeno, e continuou sendo chamado de Doca até sua morte. Duda conta que não tem nenhuma explicação racional para essa mudança.
“Em algum momento eu e o Hugo começamos organicamente a chamá-lo de Raul, talvez porque Doca seja um apelido muito carinhoso, e, em um determinado momento, decidimos deixar Raul”, conta a roteirista.
O ator Gabriel Braga Nunes, que interpreta o “Raul” do filme, diz que não fez uma pesquisa muito extensa para viver o personagem porque acredita que a trama real seja quase uma inspiração para contar uma história muito mais comum e frequente do que a gente costuma imaginar.
“Essa é uma história sobre mim, sobre você, sobre todos nós”, afirma o ator.
“Todo mundo pode se ver de repente num relacionamento tóxico, já aconteceu comigo, já deve ter acontecido com quase todo mundo. Por isso achei muito sábia essa ideia de não ir muito atrás dos personagens reais e fazer quase uma peça de teatro sobre relacionamentos tóxicos e sobre feminicídio. Que, por sinal, aumentou horrivelmente desde 1976 para os dias de hoje.”
ÂNGELA
Quando Estreia nesta quinta (7) nos cinemas
Classificação 18 anosElenco Ísis Valverde, Gabriel Braga Nunes e Alice Carvalho
Direção Hugo Prata