SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao entrar no pavilhão do parque Ibirapuera para ver a 35ª Bienal de São Paulo, o visitante parece ter voltado séculos no passado. Logo na chegada, um trilho de trem recuperado da empresa ferroviária de Gana, da época em que o país era um colônia britânica, do final do século 19 até a metade do século 20, é a memória de um tempo em que mercadorias e pessoas tratadas como tal eram transportadas de trem na região sul do país.
Os trilhos são parte de uma obra de Ibrahim Mahama, ganense que resgata estruturas coloniais para refletir sobre o passado e dar a elas novos significados. “Como podemos, mais de um século depois, transformar os resíduos desta história num presente que escava memórias, constrói novas almas em objetos mortos e apresenta às gerações vindouras memórias esquecidas cheias de potenciais infinitos por vir?”, disse o artista no Instagram, num post no qual anunciava a recuperação de locomotivas da época colonial.
Alguns metros adiante no percurso da exposição, o visitante se depara com uma instalação composta por dezenas de peças esculpidas em madeira. O trabalho de Kidlat Tahimik é como se fosse um filme que se desenvolve, com cenas ali representadas –uma delas é a morte do colonizador português Fernão de Magalhães por uma deidade filipina, outra é a deusa dos ventos soprando a saia de Marilyn Monroe, e uma terceira é um cavalo de Troia que se dirige à uma reserva da floresta amazônica onde estão os indígenas levando dentro de si o Homem-Aranha.
“Eu lido com questões como o imperialismo cultural, mas de maneira divertida”, conta o artista de 80 anos, que trouxe uma equipe de seu país natal para montar a obra, incluindo seu filho, Kabunyan de Guia. “As novas gerações conhecem todos os super-heróis de Hollywood mas não conhecem os heróis e mitos locais”, acrescenta Guia. Como se vê nas primeiras obras da bienal, a mostra de arte mais importante do país, a exposição quer elaborar os traumas do passado colonial enquanto a dominação do imaginário no presente.
A busca por ressignificar o passado está também numa pintura de Denilson Baniwa, um dos principais artistas indígenas em atividade, situada na entrada do primeiro andar. Nesta grande tela, Baniwa reflete de maneira figurativa sobre a cristianização forçada dos habitantes nativos do Brasil pela Igreja. “As meninas [indígenas] eram ensinadas a ser empregadas domésticas”, ele diz, acrescentando que nem suas línguas nativas os indígenas podiam falar.
Na tentativa de alterar o curso do presente, Baniwa chama a atenção para o predomínio das empresas multinacionais sobre o plantio de grãos, com uma das maiores obras desta bienal, uma plantação de diversos tipos de milho, elemento central na cultura do povo guarani. Como o milho demora cerca de três meses para se desenvolver, do plantio até a colheita, a ideia é que seja possível consumir pipoca e canjica antes do fim da exposição.
Tanto a plantação quanto as esculturas em madeira de Tahimik representam um tema que perpassa diversas da bienal –o da passagem do tempo de maneira não linear, não cartesiana. Enquanto o trabalho do filipino embaralha o período colonial com o contemporâneo, o do indígena fala de uma tradição secular impossível de ter seu início e término determinados num calendário, diz Hélio Menezes, um dos organizadores da exposição.
Ao acessar o segundo andar, o público é recebido por uma série de telas do coletivo Mahku, o Movimento dos Artistas Huni Kuin, formado por representantes deste povo indígena do Acre. As pinturas são representações visuais em cores fosforescentes das alucinações que os artistas têm ao tomar chá de ayahuasca, um ritual organizador da vida desta etnia, de acordo com Kássia Borges, uma das pintoras.
Segundo ela, as pinturas têm função curativa, seja pelas águas, seja pelas folhas de tabaco pintadas nas telas. “Acho que o Brasil inteiro está precisando de cura, às vezes acho que o mundo está precisando de cura, aquela guerra [da Ucrânia]”, diz Borges , aos risos.
Se o objetivo é curar o planeta, talvez Rosana Paulino, com duas obras expostas no terceiro pavimento, tenha a solução. Na série de desenhos inéditos que ela apresenta, mulheres se fundem com raízes de manguezais, ou nascem delas, num trabalho em grandes dimensões que, segundo a artista, é uma continuação das obras que mostrou na Bienal de Veneza do ano passado.
“Salvar a humanidade está no conhecimento dos ribeirinhos, dos quilombolas e dos indígenas”, ela afirma, acrescentando que há cinco anos se dedica ao projeto dos manguezais. “Para a população dos terreiros, a gente não tira uma folha das árvores sem pedir licença. A natureza está acima da gente, não o contrário.”
Paulino, uma das artistas de maior destaque da exposição, apresenta também a obra que ela considera a inaugural de sua carreira, feita há 30 anos, chamada “Parede da Memória”. Trata-se de um conjunto de patuás, os amuletos de religiões de matriz africana, na superfície dos quais a artista costurou retratos de familiares seus.
É uma das primeiras vezes em que a obra, que lida com a questão racial por exibir fotos de pessoas negras, é mostrada em sua totalidade, com 1.500 peças. “O trabalho dialoga com a população que não se viu representada durante toda a historia da arte brasileira. É uma população que sempre foi objeto, nunca foi sujeito de suas histórias”, ela diz.