SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em uma sala climatizada de paredes vermelhas, páginas de um livro estão cuidadosamente dispostas dentro de uma vitrine que percorre todo o ambiente. No papel amarelado pelo tempo, contrastam desenhos vívidos de personagens fantásticos, como um homem com vários rostos, seres com corpo humano e cabeça de animal ou um grã-fino senhor com cabelo de candelabro.
As antigas imagens são aquarelas de Melchor Maria Mercado, consideradas patrimônio nacional da Bolívia e que são expostas para o público pela primeira vez na história, na 35ª Bienal de São Paulo –fruto de uma longa negociação envolvendo o Itamaraty e que acabou por alterar a lei boliviana para empréstimo de obras de arte.
Em “Álbum de Paisagens, Tipos Humanos e Costumes”, produzido no começo da República da Bolívia, Mercado tentou criar uma iconografia para seu país, afastando-se da etnografia eurocêntrica e do estilo neoclássico que predominavam na época. Ele tentou ao máximo capturar a diversidade cultural do país, com sua forte presença indígena, sem deixar de apontar a fragilidade e corrupção do poder político que se instaurava.
Apesar dos mais de cem anos que as separam, sua obra se relaciona com a de Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita que expõe “Corpos do Deserto”, de 2005, e “Reassemblage”, de 1982, filmado em 16 milímetros.
No curta, Minh-ha filma pessoas no Senegal enquanto estas desempenham atividades cotidianas. “Ela também pensa na representação do outro com o outro, e não sem ele. Assim como Mercado, sua obra tem o elemento do humor e do grotesco”, afirma Manoel Borja-Villel, um dos quatro curadores da Bienal.
A rítmica entre obras antigas e novas permeia todos os pavilhões, ora como um balé, ora como dança contemporânea na Bienal que tem como tema as “Coreografias do Impossível”. Algo necessário em uma mostra em que 26% de seu elenco é composto por artistas mortos.
“Desviamos da ideia ocidental, do tempo como uma progressão. Aqui há a ideia do tempo em espiral, com rupturas, mas em que figuras do passado voltam ao presente constantemente”, diz Borja-Villel.
Um pouco mais à frente no percurso encontram-se os desenhos perturbadores de Ceija Stojka, romani austríaca deportada para um campo de concentração nazista quanto tinha apenas onze anos. Sobrevivente do genocídio, a artista conseguiu pintar suas memórias apenas aos 50 anos de idade, se apropriando de uma atividade incomum para sua comunidade de forte tradição oral.
Os desenhos de cores fortes e borradas, com formas pouco definidas e quase infantilizadas, como se fossem representações de lembranças doloridas, aparecem também nas obras dos brasileiros Aurora Cursino dos Santos e Ubirajara Ferreira Braga, que ganham espaço no terceiro pavilhão, lado a lado. Ambos passaram boa parte de suas vidas internados no hospital psiquiátrico do Juquery e colorem realidades difíceis com suas pinceladas.
Pelo peso de sua obra, pode causar estranhamento que, na parede em frente a Stojka, estejam os quadrinhos do americano George Harriman, que fez sucesso no início do século 20 com a série “Krazy Kat”. O protagonista, um gato que até hoje não teve seu gênero revelado, é apaixonado –e não correspondido– pelo rato Ignatz.
Mas assim como Sojka, Harriman reprime uma história. Entre as interpretações possíveis, está a de que Krazy Kat representou dilemas pessoais da vida do autor que, como homem mestiço durante as leis segregacionistas nos Estados Unidos, vivia a dualidade de pertencer e não pertencer ao lugar que ocupava socialmente.
Tema abordado também por Anne-Marie Schneider, mas de forma mais prática. Com traços simples, que poderiam ter saído de uma HQ, a francesa, hoje com 61 anos, desenha um corpo em diferentes espaços, geométricos e circulares. Pintados no mesmo tom de azul, a artista parece investigar as medidas espaciais, e se aquele corpo cabe ou não no local a ele designado.
Do lado de Schneider, outro desenho de linhas repetidas que formam contornos geométricos disfarça cálculos milimétricos feitos com o computador. É uma partitura musical, codificada por Elena Asins, pioneira no uso da computação para criar tendências geométricas no mundo da arte na década de 1960. Apenas um músico conseguiria revelar a melodia impressa, mas qualquer um que olha sabe que há um padrão naquilo.
O tom de mistério perpassa diferentes obras nos pavilhões, fazendo jus ao tema deste ano. Talvez o ponto alto esteja no trabalho de Judith Scott, responsável por costurar uma série de esculturas em camadas de fios e tecidos. Em 1950, foi internada ainda criança em uma instituição por ter síndrome de down e ser deficiente auditiva.
Scott viveu praticamente isolada do mundo até ser resgatada por sua irmã, em 1985. A artista morreu em 2005 e nunca falou de suas obras, tampouco deu nome a elas, o que levou estudiosos a precisar fazer raio-x para entender as camadas de costuras dos objetos volumosos de Scott.
A costura é ofício de muitos dos artistas que ocupam os pavilhões pensados por Oscar Niemeyer neste ano, como as brasileiras Sonia Gomes, com um corredor inteiro dedicado a acomodar suas obras, e Rosana Paulino, que estreia na Bienal de São Paulo após passar pela edição de Veneza no ano passado.
Em “Parede da Memória”, sua primeira obra que completa 30 anos, Paulino costurou dezenas de almofadinhas inspirados em um patuá, objeto de proteção usado na umbanda, que ficava na casa de seus pais. Em cada um deles, colocou a foto de um familiar coberta por uma microfibra transparente.
“Eu estava pensando na organização familiar para pessoas negras após a escravidão, que dividiu famílias”, conta a artista. “A microfibra deixa a foto esfumaçada, como se estivesse desaparecendo. Parece o que conosco quando começamos a esquecer o rosto de alguém por causa do tempo.” As mesmas 11 fotos se repetem várias vezes, como um jogo.
Na Bienal, Paulino expõe suas obras ao lado de artistas consagrados como Emanoel Araújo, Rubem Valentim e Eustáquio Neves, assim como na exposição “Dos Brasis”, que ocupa o Sesc Belenzinho até janeiro e reúne 240 artistas negros.
Mas, para ela, sua obra se relaciona apenas com a de Neves, pelo viés do registro fotográfico. “Cada artista carrega o ambiente em que viveu. A minha visão de mundo vinha de pensar uma jovem negra da periferia de São Paulo na arte, já Araújo e Valentim são baianos, com forte influência do terreiro, que eu não tenho.”
Diante de “Parede da Memória”, mapas imaginários enormes costurados por Bispo do Rosário constroem narrativas antagônicas à colonização e conversam com o desenho de seres fantásticos representados apenas por relevos em um enorme papel branco, da artista Ellen Gallagher.
“Muitas mulheres grávidas morreram no Atlântico durante as travessias do continente africano para a América. A partir daí criou-se uma lenda de que elas teriam tido seus filhos no mar e, até hoje, personagens fantásticos habitam essas águas”, conta o curador Borja-Villel.
A artista de 57 anos tenta representar as lendas da “viagem impossível”, com rostos que remetem a máscaras africanas. Ao seu lado, quadros do modernista cubano Wifredo Lam, admirado por Pablo Picasso, criam figuras ligadas à tradição afrodescendente cubana com pinceladas que lembram as vanguardas cubista e surrealista.
Em contraposição à poética de Gallagher, Harriman e Scott, outros artistas cravam o tom político desta Bienal. Um dos maiores exemplos, literalmente, é o enorme trilho de trem construído na entrada do edifício por Ibrahim Mahama, figurinha carimbada nas bienais internacionais. O trilho remete a um construído em Gana, país natal do artista, por colonizadores ingleses a fim de explorar minerais preciosos.
Outros exemplos são “A Fidai Film”, do diretor palestino Kamal Aljafari, sobre a ocupação do exército israelense de cidades palestinas, e “Tongues Untied”, de Marlon Riggs, um retrato da vida de homens negros gays nos Estados Unidos da década de 1980.
Uma sala inteira abriga produções do Taller de Grafica Popular, coletivo de artistas fundado no México em 1937 por Leopoldo Méndez. A continuação das paredes dá lugar a cartazes em prol da reforma popular no Peru com traços de pop art, criados no início da década de 1970 pelo designer Jesús Ruiz Durand, hoje com 83 anos.
No mesmo pavilhão, os indígenas yanomami Aida, Edmar e Roseane exibem os curta-metragens “A Pesca com Timbó” e “Uma Mulher Pensando”, que narram tradições ritualísticas do povo em seu território, atacado violentamente pelo garimpo ilegal nos últimos anos.
A obra é relacionável com a intervenção de Kidlat Tahimik, de enormes esculturas feitas em pedra e madeira que tomam a forma de criaturas com corpos misturados de animais e humanos. Mais conhecido como cineasta independente, Tahimik aposta em cenografias que narram histórias indígenas como confronto a ocupações coloniais.
“Entender o espaço em que se está, essa é a coreografia”, diz Borja-Villel. Afinal, a coreografia impossível poderia ser aquela que, ensaiada pelos que se foram e aprimorada nas gerações seguintes, tenta ocupar, através da arte, espaços negados pela realidade cotidiana.
35ª BIENAL DE SÃO PAULO COREOGRAFIAS DO IMPOSSÍVEL
Quando: Ter., qua., sex., e dom., das 10h às 19h; qui. e sáb., das 10h às 21h. De 6 de setembro a 10 de dezembro
Onde: Pavilhão Ciccillo Matarazzo – pq. Ibirapuera, portão 3, São Paulo
Preço: Grátis