BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O que hoje pode parecer óbvio não era tão óbvio antes de Emilia Ferreiro, pedagoga argentina que revolucionou a alfabetização infantil e morreu no último sábado (26), no México, aos 86 anos. Foi ela a principal difusora da ideia de que, por trás do aprendizado da escrita, existe um ser pensante.

“Por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. Essa criança que pensa não pode ser reduzida a um par de olhos, de ouvidos e a uma mão que pega o lápis”, resumiu ela em “Reflexões sobre Alfabetização” (2010), um dos muitos livros O pensamento não era assim em 1970, quando Ferreiro publicou sua tese de doutorado orientada pelo célebre pedagogo suíço Jean Piaget, de quem também foi professora-assistente. Indo além do mestre, ela levaria à cabo uma série de pesquisas e publicações que até hoje moldam a visão sobre o ensino.

“Eu, antigamente, fui alfabetizada juntando as letras e as palavras, mas sem entender a lógica delas. Por isso até hoje temos tantos problemas de alfabetização. Muitas crianças repetem o processo mecânico, sabem cantar o alfabeto, mas não o compreendem, não sabem usá-lo”, diz a pedagoga Tatiana Pita.

Dona de uma consultoria para secretarias de educação e escolas privadas no Brasil, ela explica que Ferreiro não criou um método, mas um entendimento sobre a estrutura do pensamento da criança: “A partir daí, eu, como professora, escolho o melhor caminho para que essa criança aprenda”, afirma.

Piaget já havia se debruçado sobre as fases do pensamento infantil e juvenil, sendo um dos expoentes do chamado “construtivismo”, que tira o aluno de uma posição passiva e o coloca como agente ativo a partir da sua interação com o objeto estudado. O que Ferreiro fez foi aplicar essa teoria à língua escrita.

A argentina observou que as crianças também passam por diferentes estágios previsíveis ao aprender a ler e escrever, nas quais constroem sua próprias hipóteses, e que essas fases nem sempre seguem a mesma sequência que os adultos usam para ensinar. A complexa teoria foi chamada de “psicogênese”.

Ela começou a se dedicar ao tema ainda como aluna de um dos primeiros cursos de psicologia de seu país, na Universidade de Buenos Aires (UBA), no final dos anos 1950. Só conheceu Piaget anos depois, quando se mudou para Genebra pela primeira vez, após a primeira ditadura militar argentina, em 1966.

Foi para lá com o marido, o físico e epistemologista Rolando García, com quem teria dois filhos. O casal voltou ao país natal pouco depois de ela publicar sua tese de doutorado, mas novamente teve que se exilar na Suiça, em 1977, após o governo de Isabel Perón ser derrubado por um novo golpe.

Sempre tentando entender por que havia tantas dificuldades de aprendizado na América Latina, Ferreiro quis se concentrar na sua região. Por isso, aproveitou um convite e em 1979 se instalou definitivamente na Cidade do México, onde viveu até a morte, de causa não divulgada. O marido morreu em 2012.

Ali, ela atuou principalmente como pesquisadora emérita do Sistema Nacional de Pesquisadores, um reconhecimento concedido pelo governo local, e do Centro de Pesquisa e Estudos Avançados (Cinvestav). Recebeu vários prêmios e até deu nome a um, que reconhece trabalhos na educação, ciência e sociedade.

Suas conclusões inspiraram políticas públicas em diversos estados e cidades brasileiras a partir dos anos 1980. “No Brasil, suas contribuições são equiparadas às de Paulo Freire”, escreve a bióloga Juieta Alcain, uma das criadoras do coletivo Científicas de Acá, que busca dar visibilidade a pesquisadoras argentinas.

“Fiz contribuições teóricas que tiveram impacto no campo educacional, exatamente nos países onde eu queria ter impacto. Aqueles que melhor me compreenderam no Brasil, lendo-me em espanhol, foram aqueles que já tinham uma familiaridade com o pensamento de Paulo Freire”, disse Ferreiro certa vez.

Já nos anos 1990, fundou um dos seus principais projetos, a Rede Latino-Americana de Alfabetização, que viu renascer em maio, quando completou 86 anos. “Levamos em nossos ombros o legado desta gigante”, publicou o núcleo mexicano da organização de profissionais que seguem sua linha de pensamento.

Pouco se fala sobre sua vida pessoal. Reservada, ela apreciava música clássica, acompanhava política internacional e tinha orgulho de seu jardim, contou a professora Giovana Zen, atual presidente da rede e uma das últimas orientandas de Ferreiro, à organização de educação Porvir.

Perdurarão suas frases mais célebres, entre as quais “a escrita é importante na escola porque é importante fora dela, não o contrário”, e o som da salva de palmas que durou quase um minuto em sua homenagem, em 2018, ao voltar a seu país para uma conferência na Universidade de Rosário.