MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) embargou 15 áreas, por desmatamento ilegal de floresta amazônica, dentro da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, no noroeste de Mato Grosso. No território vivem indígenas em isolamento voluntário, com presença atestada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) há mais de 20 anos.
É nesse território que uma das maiores empresas do agronegócio brasileiro -a usina de álcool e açúcar Coprodia (Cooperativa Agrícola de Produtores de Cana de Campo Novo do Parecis)- tenta garantir a posse de duas fazendas, como a Folha mostrou em reportagem publicada nesta quarta-feira (30). Para isso, a defesa da empresa afirma que não existem indígenas na região.
A Funai interditou a área pela primeira vez em 2001, diante da constatação da existência de kawahivas no território. Em 2007, o órgão concluiu um relatório de perícia, atestando a presença dos indígenas, e publicou portaria com restrição de uso da área. Em 2016, o Ministério da Justiça declarou que o território é de posse dos indígenas. A demarcação definitiva ainda não ocorreu.
Os atos administrativos do governo federal foram insuficientes para barrar a exploração ilegal da floresta dentro da terra indígena. Além disso, há desmatamento e grilagem acelerados no entorno do território.
Um levantamento feito pelo ISA (Instituto Socioambiental), com base em coordenadas geográficas informadas em bancos de dados públicos, mostra a existência de 15 áreas embargadas pelo Ibama na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, que fica na região de Colniza (MT), divisa com o Amazonas.
As áreas estão parcial ou integralmente no território, e somam 10,2 mil hectares, o equivalente a 64 áreas do tamanho do parque Ibirapuera, em São Paulo. Os embargos ocorreram entre 2008 e 2023, ou seja, após os atos da Funai de reconhecimento da existência dos kawahivas e de restrição de uso do espaço.
Uma das áreas embargadas, em 2009, é da Coprodia. O Ibama embargou 155,4 hectares das fazendas Cafezal 1 e Cedral -a primeira está dentro da terra indígena. O motivo foi desmatamento ilegal.
A cooperativa, que fica em Campo Novo do Parecis (MT), tenta na Justiça Federal em Mato Grosso garantir a posse de fazendas dentro da terra indígena. Para isso, a estratégia é afirmar que não existem indígenas isolados no território.
Advogado da Coprodia, Francisco Faiad disse que houve exploração de madeira “muitos anos atrás, há dez ou 15 anos”. Ele afirmou desconhecer notificação sobre embargo de área pelo Ibama.
“Fizemos duas perícias, e não há nenhum vestígio de posse indígena. Está na Justiça Federal um pedido para que a área da Coprodia seja retirada dessa demarcação entre aspas”, disse Faiad. “As perícias não constataram nem indígenas e nem vestígios.”
No levantamento feito pelo ISA, as maiores áreas embargadas estão associadas a Hilton Saporski, com desmatamento de 4.500 hectares, e a Floresta Viva Exploração de Madeira, com 2.600 hectares.
No primeiro caso, houve danificação de vegetação amazônica dentro da terra indígena e dentro da resex (reserva extrativista) Guariba-Roosevelt, colada no território, conforme descrito nos dados públicos sobre o embargo.
No caso da madeireira, não há um detalhamento maior sobre a incidência do embargo. A informação que consta é que o auto foi “baixado – defesa deferida”.
A reportagem não conseguiu contato com Saporski, desde esta quarta-feira (30), nos telefones informados no auto do embargo e em cadastro de empresa em seu nome.
Também não conseguiu contato, desde a quarta-feira, nos números associados à Floresta Viva, que aparece como suspensa na Receita Federal, nem com os sócios que constam na Receita, Janete Riva e a José Geraldo Riva Júnior. Eles são parentes do ex-presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso José Geraldo Riva.
O Ibama embargou ainda uma área associada a Joaquim Walter Pereira Pinto. A área destruída foi de 227 hectares, dos quais 8,3 hectares estão na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, segundo o órgão ambiental.
“O caso relatado não corresponde com a verdade. O imóvel rural não pertence a Joaquim Pinto”, disse a advogada dele, Liana Sagin, por mensagem. “Fizemos a defesa administrativa negando a autoria e aguardamos confiantes a análise dos documentos.”
No levantamento feito pelo ISA, a maior quantidade de embargos -quatro- é de áreas atribuídas a Guilherme Dischier. Segundo a base de dados, os embargos ocorreram por desmatamento e por impedimento de regeneração da mata nativa. As áreas envolvidas somam mais de cem hectares.
A reportagem não conseguiu contato com Dischier.
Um relatório da Opan (Operação Amazônia Nativa) aponta a existência de 47 imóveis rurais declarados no sistema do CAR (Cadastro Ambiental Rural) e com sobreposição à área da terra Kawahiva do Rio Pardo. A área desses imóveis é de 127 mil hectares, um terço da área da terra indígena, que tem 411,8 mil hectares.
“Os kawahivas isolados do Pardo vivem da coleta, da pesca e da caça, nesta ordem de importância”, afirmou a Funai na perícia de 2007. “Em função do estado de fuga permanente a que estão submetidos, os kawahivas atingiram um alto grau de especialização em se deslocarem por todo aquele território, semeando estrategicamente dezenas de acampamentos.”
Diferentes povos indígenas se denominam kawahivas. Em 1913, conforme o relatório técnico da Funai, houve contato de três subgrupos pelo marechal Cândido Rondon, militar e sertanista brasileiro. O etnólogo e antropólogo francês Lévi-Strauss permaneceu por duas semanas com um pequeno grupo kawahiva, 25 anos depois de Rondon, segundo o documento.
“Os dados de que dispomos até agora nos levam a considerar que o grupo local Kawahiva do Rio Pardo é composto por, pelo menos, duas famílias extensas e cuja população total deve situar-se entre um mínimo de 19 e um máximo de 26 pessoas”, apontou a Funai em 2007.