SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Aqui é um lugar de resistência. Sempre será”, declara o estudante de geografia Andler Gotardo, 23, apontando para o Crusp (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo). O local completa 60 anos neste mês, e seu histórico sustenta a afirmação do jovem.
Fincados entre a praça do Relógio e o Centro de Práticas Esportivas, oito blocos compõem o complexo A1 ao G. Sete deles foram erguidos para abrigar atletas participantes dos Jogos Pan-Americanos de 1963, quando a capital paulista realizou o evento pela primeira e derradeira vez.
Os competidores deixaram os 462 apartamentos, cada um com três acanhados quartos, em 5 de maio daquele ano, e cômodo a cômodo foram lacrados. A reitoria da universidade havia prometido, porém, transformá-los em abrigo gratuito para alunos retirantes. Inconformados, 12 deles invadiram o espaço ao final de agosto. Logo eram centenas.
O movimento estudantil de São Paulo fomentou a ocupação e transformou a local em fulcro de resistência quando instaurada a ditadura militar, poucos meses após a tomada.
Passados quatro anos, tudo estava acabado. Tanques do Exército investiram contra os edifícios na madrugada de 17 de dezembro de 1968. Os presentes eram acusados de conspiração. Metade dos 1.400 moradores foi presa e, horas depois, largada num ponto longínquo da rodovia Raposo Tavares. O restante só escapou por estar fora para as festas de Natal e Ano Novo. Outra vez, os apartamentos foram selados.
Julia Gumieri, pesquisadora do Memorial da Resistência, destaca o papel do Crusp como fortaleza democrática. “É um espaço de reuniões, de encontro, de organização da militância em múltiplos aspectos. Ontem e ainda hoje. E, por isso mesmo, segue alvo de vigilância.”
Para a especialista, os estudantes a habitar aquele endereço sempre debateram temas maiores que a própria condição acadêmica. Lá, houve o alvorecer de nomes em meio ao fim da opressão e posterior abertura política. “Em razão disso, o Crusp é parte desse inventário de lugares de memória.”
REABERTURA E MARGINALIZAÇÃO
Pouco mais de uma década se passou até a entrada de novos moradores nas acomodações. Uma invasão foi organizada em 1979, e ativistas e punks coligaram-se. Foi montado um acampamento no gramado e, após dias de planejamento, grupos partiram para conquistar seus sítios. A princípio, tomaram 11 quartos.
As condições eram precárias. Mofo e infiltrações, hoje ainda inquilinos, já eram dominantes. Ferrugem e pragas, até agora fiéis companheiros, completavam a vizinhança.
Os administradores da USP aguardaram. Sorrateiros, farejavam oportunidade para reivindicar o espaço. Uma tragédia lhes deu fôlego.
Era noite de 10 de novembro de 1984. Sábado. Dois homens foram encontrados mortos em frente ao bloco A. Durante uma briga, eles se apoiaram em um tapume quebrado no 4º andar e despencaram.
O episódio incitou conflito entre a reitoria e os moradores. Estes pediam por melhor estrutura. Aquela exigia a total desocupação dos imóveis, dizia que o local era um antro de delinquentes. A fama persiste.
Passadas as reformas concretizadas entre os anos 1980 e 90 e muitos residentes, a tensão perdura. Hoje, a administração da maior universidade do país tenta despachar os, segundo ela, irregulares. Os alvos dizem sofrer inquisição.
É o caso de Rômulo dos Santos Paulino, 48. O homem franzino de ralos cabelos grisalhos está fazendo suas malas. Deveria ter deixado o mal-apessoado apartamento 111 do bloco A até esta terça-feira (29). A ordem surgiu em informe deixado à porta três dias antes. Ele, porém, não tem para onde ir. Sua filha, de sete anos, também vive ali.
Rômulo chegou ao conjunto em 2020. Divorciado, adentrou no programa de pós-graduação em educação. Em abril deste ano, tornou-se mestre. Conforme regimento, teria seis meses para pleitear sua continuidade como radicado ou deixar as dependências estudantis.
Ele afirma estar em processo para doutorado. A USP diz, em nota, despejar apenas moradores irregulares e esclarece os motivos. “Para ser contemplado com a moradia, o aluno deve ter vínculo com a universidade, ou seja, deve estar matriculado regularmente em cursos de graduação e de pós-graduação.”
Quando os abordados recusam-se a sair, são trocadas as fechaduras. Nesta semana, uma mulher ficou trancada por horas, gerando revolta.
A conjuntura rachou a AmorCrusp (Associação de Moradores do Crusp). Parte, representada por Andler Gotardo, defende análise criteriosa e humanizada de todos os episódios. Ele afirma não caber à instituição jogar pessoas nas ruas.
Há ainda uma ala resignada com as expulsões, como a presidente da associação, Mariane de Oliveira, 30. Ela afirma estar vigilante quanto às investidas da reitoria. Seu intuito, entretanto, é proteger os devidamente matriculados. “É injusto permitir a desorganização do Crusp para benefício de alguns”, dispara.
A gestão de Mariane deseja a instalação de câmeras de segurança e catracas no conjunto. Argumentando ser aquele um ambiente livre, a oposição tem sido mais forte.
Residem hoje cerca de 1.600 indivíduos no Crusp. Destes, 300 estão irregulares, diz a AmorCrusp, divididos em duas categorias: matriculados e fantasmas, caso de Rômulo. Para os primeiros, acolhidos por não terem condições de aguardar vaga ou enfrentar o aluguel paulistano, sobram defensores. Incluindo toda a associação.
Apesar de tanta intrujice, a USP afirma não haver fila para residir no conjunto, “pois os estudantes que não foram contemplados com a moradia recebem bolsa de R$ 300”.
Nos últimos meses, as edificações têm sido reformadas. O bloco D está sendo remodelado, e cozinhas foram instaladas nos demais. Além disso, colchões recém-adquiridos são distribuídos. Isso é insuficiente, dizem os moradores, para compensar o abandono durante a pandemia de Covid-19. Três pessoas cometeram suicídio no período.
“Seres humanos passaram fome. Frio. Sede. E foram mortos por descaso e precariedade”, relata Júlia Oliveira, 25, enquanto tentava desentupir uma privada inoperante há semanas.